Amigoculto


Por JÚLIA PESSÔA

18/12/2016 às 07h00

Enquanto andava pelas galerias do Centro, no calor amazônico típico de dezembro (mas agora um tanto raro), pensava no quanto detesto amigo-oculto, ao mesmo tempo em que buscava comprar algo para o meu. Lembrava-me com vivacidade de todos os anos em que presenteei com um livro bacana, um CD (quando ainda se comprava) ou segui o protocolo da lista de presentes e recebi, em troca, roupas caras que nada tinham a ver comigo, rádios-relógios e um clássico natalino: o “repasse” – quando alguém dá algo que já havia ganhado e não gostou.

Sempre me questiono por que as pessoas participam um ritual em que os índices de probabilidade de constrangimento são tão elevados. Primeiro, há a inquestionável roleta-russa da caixa de Pandora de papeizinhos com nomes: a bala fatal pode ser um parente, colega, amigo-do-amigo ou agregado que a gente não tolera ou simplesmente não conhece o suficiente para presentear. Também tem o inevitável discurso que antecede a revelação de “quem-tirou-quem”, que sempre precisa ser engraçadão/”criativo”/surpreendente/edificante. Não menos arriscada, há a possibilidade de ouvir a máxima “achei sua cara”, que normalmente requer sorrisos amarelos diante da óbvia incompatibilidade facial em questão com o presente dado.

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As derivações do original, já ruim por natureza, também não ajudam. Para começar, tenho horror de qualquer palavra criada pela semântica fanfarrona. “Crepioca”. “Bebemorar”. “Chococulto”. Deste, ainda sinto o sabor de parafina quando penso em um dos que participei ainda criança, em festinha de escola. Mesmo sem ser religiosa, todo ano rezo fervorosamente para que nenhum comediante dos meus círculos sociais sugira o embaraçoso “inimigo-oculto”, invariavelmente cheio de piadões carregados de tudo que é preconceito, porque “esse povo politicamente correto é muito chato.”

Estrategista que sou, ative-me à lista de presentes do amigo que tirei no sorteio da família, no qual tenho a sorte de ter boa parte dos riscos acima eliminados – ou reduzidos. Chego em casa feliz em ter concluído a missão e me deparo com a última sacola de presentes que ganhei, há poucos dias. Uma agenda com bilhetinhos espalhados pelos 365 dias de 2017. Um caderninho para eu anotar as ideias que acabam publicadas aqui, com um desenho feito à mão de um rosto que mescla as feições do John Lennon com o bigode inquestionável do Belchior. Dois pacotes de café orgânico, de que logo tirei umas colheres e meti na cafeteira italiana, para bebericar enquanto folheava os outros dois mimos igual criança. Entre uma golada e outra, constato, implacável: os melhores amigos nada têm de ocultos.

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