Alquimia


Por Júlia Pessôa

18/04/2021 às 07h00

Não sei por quê, mas essa semana me lembrei de uma bobagem completamente mundana que me arrancou risos na época e me fez sorrir de novo esses dias. A memória me levou pra quase vinte anos atrás – pausa para sentir o efeito do tempo -, numa das edições da saudosa Sexta Cultural, uma em que eu integrava o diretório acadêmico Vladimir Herzog e, portanto, participei da organização.

Não tinha WhatsApp e quem tinha celular raramente tinha grana para se comunicar pagando por cada mensagem enviada. Então muito da nossa comunicação era por listas de e-mail e os bons e velhos bilhetinhos. Um desses apareceu colado na porta do DA, solicitando ajuda com os preparativos para o dia da festa. “Lembrem-se de trazer garrafas PET para fazermos gelo”, dizia a nota em um dia. No seguinte, alguém escreveu logo abaixo: “Ass: Raimundo Flamel”. Rendeu um dia inteiro de risos.

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Embora um Google pudesse explicar a piada, presto solidariedade a quem tem bem menos de 30 ou está na casa dos 30 e muito poucos. A graça toda era que o tal Flamel foi um personagem icônico de uma novela das oito, interpretado pelo então galã Edson Celulari, um misteriosíssimo alquimista. Daí a risaiada: tivesse ele assinado o bilhete, seria como se, por mágica, as garrafas se transformassem em gelo, literalmente.

OK, sei que contando não tem tanta graça. Talvez seja uma daquelas histórias em que você tinha que estar lá pra rir. Ou talvez a gente tivesse o riso frouxo na época mesmo, lá por 2004, 2005. Mas deu uma nostalgia gostosa da espera por festinhas com cerveja barata e todas as pessoas que víamos diariamente; do anseio por um futuro cheio de possibilidades e de gargalhadas por bobagens absolutas.

Bem ou mal (spoiler: mal), já faz muito tempo que várias modalidades de uma potencial alquimia viraram nossa especialidade. Transformar a casa em local de trabalho. Verter a redução salarial em sustento. Transmutar o amor em entregas por delivery, mensagens de WhatsApp, ligações de vídeo, acenos socialmente distantes e sorrisos encobertos.

Infelizmente, alquimia não é ciência e não tem garantias de funcionamento. Portanto, algumas coisas continuam como são, intransformáveis a não ser que a destruição seja parada, deposta, impechada. Apesar disso, enquanto a metamorfose faz dos meus pensamentos este texto escrito, digito no ritmo acelerado da esperança que sinto de que os tempos de hoje alquimizem-se em passado.

Ass: Raimundo Flamel.

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