Sobre o intolerável


Por Júlia Pessôa

16/09/2018 às 07h00

Depois de algumas semanas longe do meu computador na redação, retomei o trabalho após as férias. Semiférias, pelo menos, já que ingressei em um curso de especialização na UFJF. Foi preciso voltar a me sentar naquelas carteiras para perceber o quanto sentia falta de estudar, das fofocas de corredor com os colegas – que hoje giram em torno de emprego e carreira acadêmica, diferente do que acontecia na graduação, mas não sem uma boa dose de conversa fiada e bobagens – , do delicioso processo de fazer novos amigos e amigas, de sair da aula com a cabeça explodindo por um aprendizado que transformou uma visão de mundo. Sim, eu sou uma entusiasta incorrigível – e às vezes até um pouco deslumbrada – do poder transformador deste lugar tão subvalorizado, e ao mesmo tempo tão equivocadamente disputado por forças que nada compreendem de educação: a sala de aula.

Dia desses, na aula, discutíamos um texto que falava sobre como certas acepções vão se tornando intoleráveis ao passo que adquirimos certos conhecimentos. Nem sou eu que estou dizendo, mas assino embaixo, com todas as letras e acentos do meu nome, das palavras de Guacira Lopes Louro: “É intolerável conviver com um sistema de leis, de normas e de preceitos jurídicos, religiosos, morais ou educacionais que discriminam sujeitos porque seu modo de ser homem ou de ser mulher, suas formas de expressar seus desejos e prazeres não correspondem àquelas nomeadas como ‘normais’. ”

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Atrevida que sou, eu iria além ainda de Guacira e acrescentaria ao que ela disse que é intolerável viver em um mundo onde há apologia à violência, desdém amplo geral e irrestrito pelas mulheres, ódio a qualquer manifestação considerada diferente, (des)valor atribuído pela cor da pele e por qualquer traço físico, e, de forma geral, exaltação de ideais que diminuem outros seres humanos, em suas individualidades e/ou coletividades.

A questão sobre o que não se pode mais tolerar é que, da incapacidade de continuar suportando, irrompe a ação, a mobilização, o desejo urgente e irrefreável de mudança, que cedo ou tarde converte-se nela própria. E algo me diz que, antes tarde do que nunca, estamos no limiar de não tolerar mais coisas que, nos últimos tempos, temos engolido a seco, ferindo nossas goelas. Não é o caso – jamais – de responder com violência, física, verbal ou moral. Não é disso que trata essa intolerância. Deixemos que ela fique com quem combatemos, porque talvez sejam incapazes de responder de outra forma, completamente esvaziados de argumentos minimamente plausíveis.

Na última semana, em um grupo de Facebook, mulheres de todo o Brasil e do mundo se reuniram virtualmente para fazer frente ao avanço do que representa, atualmente, quase tudo que existe de intolerável nesse caos pré-eleitoral em que nos encontramos. Em poucos dias, tornamo-nos mais de um milhão. Há quem diga que é só um movimento besta e sem representatividade da internet. Mas eu duvido que, do alto da misoginia, não haja alguém temendo tomar uma rasteira justamente de uma multidão delas, justo delas. Fraquejadas, uma pinoia! Pode ser meu deslumbre com o conhecimento, o que vem da sala de aula (como disse) e o que vem da troca de vivências, dores e do que se torna, enfim, inadmissível. Mas eu juro que acredito – não sem medo, claro – que estamos no limiar de soterrar, cedo ou tarde, o que nos é cada dia mais intolerável. Juntas, atentas e fortes. Juro pelos meus ovários.

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