Juiz de dentro


Por Júlia Pessôa

16/08/2015 às 07h00

Essa semana me brotou um terçol e amanheci caolha e com dor na pálpebra. Hipocondríaca que sou, fui logo ao médico afastar a possibilidade de algo contagioso, traumatizada pela vez em que iniciei, sem querer, um surto de conjuntivite na faculdade. Medicada, lembrei da minha Vó Nazinha, que jurava curar terçol com aliança de casamento. Era só esfregá-la na roupa até ficar bem quente, e depois colocá-la sobre o olho zicado e batata! Melhor que colírio, pomada ou qualquer “mudernidade”, segundo seu pHd em receitas de vó.

Uma coisa admirável na Vó Nazinha é que, mesmo cheia de seus preconceitos, como todos nós, ela não julgava as pessoas (a não ser pelo critério altamente científico conhecido como “meu santo não bate”) ou as rotulava. Lembro-me de quando ela me disse, meio atravessada, sobre um casal de amigos gays de nossa família, quando eu devia ter uns sete anos: “Todo mundo acha que eu sou boba, que não sei que eles são ‘bolóia'”, disse ela, tentando dizer “boiola”, termo pejorativo, sim, mas que estava “na moda” na época e, neste contexto específico, ficou até fofo. “Mas que é que tem ser ‘bolóia’, né Júlia? O importante é ser boa gente”. Isso mesmo, Vó.

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Fico pensando o que ela acharia desse tribunal de hoje, em que somos tão julgados por nossos corpos, nossa sexualidade, o que pensamos, o que vestimos, e até o que comemos! Tem sempre algum funcionário de plantão na “Fantástica Fábrica de Rótulos” para tascar uma etiqueta em nossas testas, reduzindo-nos a um julgamento não solicitado e, invariavelmente, equivocado: “gorda”, “bicha”, “petralha”, “coxinha”, “piranha”, e uma série de superficialidades que normalmente vem de quem está pronto para ofender, mas é incapaz de argumentar e indisposto a ouvir. Mas o martelinho está sempre a mãos, pronto para dar o próximo veredicto com ares de verdade única e absoluta.

Estamos em tempos em que se emite qualquer opinião sobre os outros, em nome da sobrevalorizada “liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, as pessoas parecem se esquecer de que o que dizemos sobre os outros fala muito mais sobre nós mesmos. São tempos difíceis. Muito carro adesivado com “abaixo a corrupção” parado em vaga de deficiente. Muito “cidadão de bem” aplaudindo espancamento. Muito “cadeia neles” pra maconha de pobre e muito “é só um baseadinho” pra beque de playboy. Muito “juiz de fora” pra pouco “juiz de dentro”. Tento ver esperança de que as pessoas caiam em si, mas quanto mais me esforço, menos consigo enxergar. Deve ser o terçol.

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