União dos povos


Por Júlia Pessôa

12/11/2017 às 06h30

Naquela segunda cinza, fria e úmida, Fernanda, uma otimista inveterada, tinha acordado de ovo virado. Tudo bem. Era o recomeço dos dias úteis. E chovia aquela chuva fininha e que não molha, tampouco deixa secar, tipo aquelas que caem o ano todo em Petrópolis. Fez um tratado consigo: vou me permitir meia hora desse azedume fidazunha, e depois segue o baile. “Fidazunha”. Porque Fernanda era assim, quando ficava p*%$ta da vida nem xingava “pra não atrair coisa ruim” – bem ao contrário da interlocutora.

Saiu de casa e deu um “bom dia” na medida pros companheiros de elevador: nem muito seco, nem alegre demais pra uma eventual rabugice matinal alheia, compreensível. “Bom dia”, um sorriso de lábios fechados e uma levantada de sobrancelha discreta. Ouviu grunhidos entre reviradas de olhos, com uma réplica entredentes de muita má vontade. Mas Fernandinha não era de esmorecer. “Cada um com seus problemas”, pensou. E seguiu para o trabalho, onde repetiu a saudação aos colegas de escritório, obtendo como resposta somente o silêncio de quem nem vira as caras da hipnose dos monitores de seus desktops já ultrapassados.

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No almoço, foi a um restaurante na esquina da firma, um “pé sujão” maneiro, com um PF bacana e um dono super gente boa. Tinha fila até. Claro, a comida era ótima. Já planejando a opção do dia que ia tomar com uma Coca normal de garrafa de vidro (“porque dane-se dieta, né?”, pensou), ia esperando, quando pensou alto, sem querer – porque odeia ser entrona: “Nossa, hoje só tem rango bom no cardápio”. Bastou isso para causar uma inesperada ira dos outros que estavam na fila. Um “hunf” do senhorzinho da frente, um “afff” da adolescente que estava atrás e um pouco mais longe, teve certeza de escutar alguém dizer: “Putz, tem sempre uma mala pra puxar papo, né não?”.

Foi aí o estopim de Fernanda. Com fome, levando sabe lá qual patada daquela segunda-feira e com o dia ainda longe de acabar, pensou que toda essa gente com cara de fundilhos não merecia seu benefício da dúvida. E então virou uma demônia, igualzinha o povo que a cercava, descontando as mazelas da vida (que ok, não são poucas) em quem nada tinha a ver com isso: “Mas que bosta! Essa p**ra dessa fila não anda nessa joça, não, cacete?”, gritou uma transmutada e boca-suja Fernandinha, finalmente acolhida pela comunidade: “Que lixo de atendimento nessa espelunca!”, “E olha que a comida nem é lá essas coisas”, “Não volto nunca mais nessa m**da!”… foram alguns dos manifestos “solidários” ao seu.

E concluiu, um tanto triste, que havia descoberto o infeliz segredo da união dos povos nestes tempos esquisitos. Não o diálogo, a gentileza, ou mais longe ainda, o tal do amor, mas a grosseria.

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com humores, patadas e desesperanças e desilusões da vida real terá sido mera coincidência.

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