Gatilhos


Por Júlia Pessôa

12/07/2020 às 07h00

Numa tarde qualquer pra trás do calendário, meus dedos e olhos deslizavam pela tela sem um rumo definido, como nos tempos em que a gente batia uma perna pelas ruas entre um compromisso e outro. Olhando as vitrines de selfies, pães caseiros e pets, caí numa dessas arapucas da memória afetiva. Um gatilho, como se diz.

Dourado, empanadinho com cerveja e aveia em flocos, com a crosta crocante que chega a estalar na primeira mordida, e o recheio carnudo e suculento, na temperatura ideal: dá para segurar sem queimar a mão e para comer sem descolar pelinha do céu da boca. I-de-al. Estava ali, como um diabo, uma tentação, um castigo ou sei lá o que, fazendo com que eu desejasse o que não posso ter: o fidazunha do Frango Croc do Bar do Abílio.

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Veja bem que este nem é o meu petisco preferido do cinquentão enxutíssimo da Fonseca Hermes. Assim, no susto, eu poderia lembrar de alguns que gosto mais, o premiado “figuinho com jiló”, um clássico da casa; ou de uma outra iguaria estrelada cujo nome não me lembro – e não importa – , mas que tem mandioca, carne seca, pimenta de biquinho e um banho de manteiga de garrafa.

Diferente dos gatilhos que aprendi a identificar ao preço de muita terapia e uma ou outra cerveja-desabafo (algumas até no Abílio), eu não sei por que o Frango Croc, especificamente, deu esse aperto de saudade no meu tamborim, para dizer em bom juiz-forês. Até porque embora fã, eu nem sou frequentadora de carteirinha do Bar do Abílio, sabe Deus, caso exista, o porquê. Não se trata também, embora fosse justificada, de uma vontade de cerveja com comida de botequim, que posso suprir com uma viagem à geladeira e uma das muitas tecnologias de delivery.

O Frango Croc talvez tenha me apunhalado pelo beber na calçada em dias muito quentes para se ficar dentro do bar. Pela descompromissada cerimônia do “Vamos no Abílio?”, respondida na certeza de quem sabe os protocolos para que o programa seja ideal: de dia, de preferência perto da hora do almoço, substituindo a refeição com várias porções. Da liberdade inexorável de, com o bucho cheio, emendar uma ou várias saideiras na praça do Léo se tiver sol, no Dias se a ideia for continuar comendo; no Baixo São Mateus em caso de se ver o movimento – e aí a escolha do local varia com o orçamento do grupo. Da perspectiva, também, de ir para qualquer outro canto ou bar da cidade, inclusive a escolha de encerrar a expedição e ir pra casa.

Movida pelo arroubo gustoafetivo, pedi o Frango Croc pelo celular. Mas o efeito foi o que relatam ser o da doença que tudo nos rouba,  já que parecia que tinham me tirado o paladar. Não porque a porção estava insípida, já que novamente volto a inundar a boca só com a recordação. Mas porque as mordidas em nada trouxeram o gosto que tanto me faltava, o apuradíssimo sabor de possibilidade.

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