Não é pessoal, é estrutural


Por Júlia Pessôa

11/04/2021 às 07h00

Na última semana, como se não bastasse viver no Brasil de 2021, epicentro da Covid e da necropolítica, vimos a TV aberta exibir mais uma vez uma amostra declarada e reafirmada de racismo.  Escondendo-se atrás de um falacioso “estou aprendendo”, refúgio dos covardes privilegiados que podem dar-se ao luxo de “não saber”, a negritude foi mais uma vez violentada, desmerecida. “Não foi minha intenção”, “foi piada”.  Mas quem está rindo? Como branca, jamais sentirei a dimensão da violência dos tantos racismos. Mas tampouco posso me acovardar em um “não é meu lugar de fala, portanto não posso me posicionar”. Reconhecer que a estrutura racista privilegia as pessoas brancas sistematicamente é o primeiríssimo passo para desmantelar seus efeitos. E o mínimo absoluto que nós, a branquitude, temos que ter vergonha na cara de fazer. Quanto aos efeitos diários e históricos do racismo, no BBB e na vida, quem vos fala é meu amigo querido Will Marinho, que, como tantos e tantas, os sente na pele desde que nasceu.

Não assisto ao Big Brother Brasil. Na categoria de reality, particularmente, gostava mais do No Limite. Primeiro, pelas belas paisagens e, segundo, pela quantidade de perrengue que os participantes passavam para ganhar algo. Era uma metáfora mais sincera da vida. Principalmente da minha. No entanto, mesmo escolhendo não ver as tramas da casa mais vigiada do Brasil, sempre tem “um amigo ou amiga” bem-intencionado/a me enviando algum trecho do programa e exigindo a minha opinião.

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E foi assim que chegou até a mim o caso do professor João Pedrosa, que teve seu cabelo black power comparado ao de um homem das cavernas pelo cantor Rodolffo Mathaus. Uma amostra inconfundível de racismo estrutural que foi refutada até o último minuto pelo sertanejo sob os mais variados pretextos: “Meu pai tem o cabelo igual ao dele”, “foi só uma brincadeira”, “se alguém tivesse me ensinado, eu não teria cometido essa mancada”, explicava o BBB eliminado no último paredão.

Nas falas de Rodolffo, temos o exemplo daquela frase que diz “A vida imita a arte” (ou vice-versa). Todas as vezes que uma pessoa negra aponta o racismo estrutural em uma fala ou atitude de uma pessoa branca, a questão é levada para o pessoal. Assim, aos olhos de quem assiste à cena, o oprimido vira rapidamente o opressor. E é essa lógica que alimenta a estrutura que, na menor escala, nos compara a seres primitivos ou animais e, na maior, nos impede de acessar vagas de emprego, cargos políticos, educação de qualidade e até saneamento básico (em casos mais extremos).

Levar para o pessoal também isenta a responsabilidade de mudança. Porque uma vez aceito que existe uma estrutura racista no Brasil, uma parcela considerável de brancos e brancas terão que repensar os privilégios adquiridos ao longo da construção do nosso país. Velhos valores terão que ser analisados, ídolos históricos precisarão ser revistos, padrões de beleza alterados e, claro, o capital precisará ser redistribuído. Muito trabalho! Mais fácil abstrair e fingir demência.

E, para provar que estou certo, farei uma previsão do que acontecerá a seguir: após ler o texto, vão dizer que sou “vitimista” ou “mimizento”. Que, na verdade, a fala de Rodolfo foi sem maldade e que, como não vejo o programa, não entendo o contexto. Vão me chamar de militante lacrador e incompreensível. Também me cobrarão um posicionamento sobre as atitudes da Karol Conká (outra ex-participante do BBB) e terminarão tudo isso dizendo que “não é pessoal”.

Eu sei que não é. É estrutural.

Will Marinho – jornalista, publicitário e palestrante

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