Chegar sem ir


Por Júlia Pessôa

10/05/2015 às 07h00

Eu deveria evitar o clichê de falar sobre as mães hoje, mas assino já a mea culpa e descumpro a obrigação. Toda mãe – ou o pai, a tia, a irmã, a avó, quem quer que seja que assume o papel dela na criação de uma pessoinha no mundo – tem seu pequeno arsenal de citações, frases que se tornam parte de sua identidade espontaneamente. Muitas das que Dona Silvia, minha genitora, proferiu ao longo da vida, fazem parte do meu repertório até hoje, e já divertiram, irritaram e despertaram a minha curiosidade e a de meu irmão Fernando desde sempre.

Sempre que escutávamos: “Gente, apaga essa luz! Não sou sócia da Light!”, imaginávamos que a Light, concessionária de energia fluminense, era uma espécie de clube superbacana, que permitia que seus sócios fizessem todo tipo de estripulia com eletricidade que era negada a nós, não-sócios: brincar de acender e apagar a luz, largá-la acesa, demorar horas no banho ou com a geladeira aberta, entre várias outras “regalias elétricas”.

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Outro clássico da mãe era dizer que alguém “não estava nem aí pra hora do Brasil”. A gente achava meio sem sentido: por que se importar com a hora do Brasil, gente? Era uma má hora? Atrasada? Não entrava em nossas microcabecinhas. Já adolescentes, ouvimos séries de “Você não é todo mundo”, “Meia-noite ou nada”, “Eu confio em você, não confio é nos outros”, os quais quase sempre despertavam nossa ira juvenil e discursos dramáticos sobre a incompreensão materna.

Hoje, adulta, as frases célebres ainda me proporcionam conforto e acalanto, quando nada mais no mundo seria capaz. Por conhecer tão bem o “A mãe precisa sair pra trabalhar” que ouvi da minha, professora, por toda minha vida, é que me foi tão intimamente doída a opressão contra os educadores que protestavam por melhores salários e condições de trabalho no Paraná, na semana passada. Dona Silvia também costuma dizer, das preocupações que não são urgentes: “Não é sangria desatada”. Mas as adversidades a que nossos docentes são submetidos diariamente no trabalho e em sua folha de pagamento são sim, sangria desatada. Infelizmente, obtiveram a mesmíssima moeda como resposta a seus questionamentos: Sangria. Desatada.

Toda vez que estou um pouco cabisbaixa por estar indo embora de sua casa, aqui na vizinha Três Rios, onde nasci e fui criada, ouço de minha mãe, sempre pertinente: “Ah, filha, seria tão bom chegar se a gente não precisasse ir, né?”. Acreditando nesta utopia, vez ou outra me pego reconfortada pela ilusão de que poderíamos, um dia talvez, chegar a uma realidade em que nossos professores fossem valorizados à altura, nas contas bancárias e na vida, pelo trabalho que fazem. Seria bom chegar lá, sem termos que passar por essa estrada de barbárie e desrespeito que estamos atravessando. “Chegar sem ir”, como já ouvi tantas vezes.

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