Jogo de varetas


Por Júlia Pessôa

09/08/2020 às 07h00- Atualizada 10/08/2020 às 08h40

Eles já vinham ensaiando, mas de frente para o espelho naquele dia, uns três saltaram aos olhos. Grossos, insolentes, impossíveis de não serem notados aqueles fios de cabelo branco, de textura e formato distinto de qualquer outro dos muitos fios castanhos que me habitam a cabeça. Não que eles tenham sido pioneiros. Outros bandeirantes sem sorte desbravaram antes o desconhecido território de meu couro cabeludo, só para serem vitimados em um homicídio culposo de uma criminosa muitas vezes incrédula da expedição.

Nunca tive medo de envelhecer – mas posso ainda ter. Pode ser porque tenho sido beneficiada pelo passar dos anos, talvez porque me sinto mais feliz, talvez porque me vejo mais bonita, ou talvez porque a vida tenha melhorado mesmo – embora não exatamente agora. Certamente é porque aprendi a gostar mais de mim e ser, na maior parte do tempo, mais gentil comigo mesma. Essas coisas meio autoajuda que a gente passa a fazer. Até porque se a gente não se autoajudar, quem vai?

PUBLICIDADE

De qualquer jeito, os fios brancos em si não incomodam. Vejo cabeleiras grisalhas lindíssimas de mulheres das mais variadas idades. Vejo também belíssimas madeixas coloridas artificialmente. Acho que me causa estranhamento é ver aqueles três fios solitários, sem pertencimento, diferentes de outros tantos milhares. “Vou arrancar”, pensei.

E aí pensei no quanto estamos à flor da pele nestes tempos. No quanto o clichê da borboleta que bate as asas não sei onde, causa um desastre sem precedentes do outro lado do mundo. Dia desses, bem branca de classe média, tive uma crise de choro porque a gata fez cocô fora da caixa. “Ela deve estar estressada, não quero que ela sofra”, pensei, dramática. A gata segue atrevidíssima, esbanjando saúde e paz de espírito.

Viver tem sido, ultimamente, um jogo de varetas. Às vezes, a gente puxa um palitinho lá do fundo da pilha e as outras continuam intactas, como devem permanecer para que a gente vença. Em outras, a gente vai na manobra mais garantida, na vara mais distante das outras, quase impossível de fazer mexer qualquer outra peça. E por um espirro, um vento safado ou puro azar, os gravetinhos se movimentam. Perdemos. Desabamos.

E se estes três fios de cabelo forem as varetas responsáveis pelo meu desabamento? Saber jogar também é passar a vez. Deixei-os lá. Sigo ganhando.

O conteúdo continua após o anúncio

Os comentários nas postagens e os conteúdos dos colunistas não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir comentários que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.