De costas para o mundo


Por Júlia Pessôa

06/09/2015 às 15h25

A imagem não sai da cabeça mesmo. O corpinho franzino, aparentando seus poucos três anos de vida, aparece de camisetinha vermelha e short azul, roupa que meu filho, se eu o tivesse, poderia já ter usado. Talvez o seu já tenha. Aylan, como as crianças da idade costumam fazer, estava de bruços, mas com o rostinho perdido, não na maciez de um travesseiro, mas afundado nas areias da Turquia, já sem respiração. Da maneira mais cruel, dolorosa e literal possível, mostrou ao mundo o que é “morrer na praia”, sonhando com uma Grécia que seus olhinhos jamais contemplarão. Nem os de seu irmão. Nem os de sua mãe. Nem os de seu pai, que sobreviveu ao desastre, mas sabe-se lá se sairá vivo deste golpe tão pungente da vida. Tudo que resta do sonho de uma existência melhor  em solo grego é um retorno à Síria sem família, sem esperança e em meio à violência e à miséria absolutas de um país em guerra.

A imagem do pequeno Aylan desfalecido diante do Mar Mediterrâneo mostra, sim, a face mais cruel da humanidade, mas ela vai muito, muito além das mazelas inerentes à imigração na Europa. A foto que não sai de nossas mentes não reflete outra coisa senão nossa capacidade inexorável de fechar os olhos diante das desgraças que atingem alguém que não nos interessa: os outros.

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Alguns milhares de outros refugiados de países como Síria, Líbano, Afeganistão e Iraque certamente deram seu último suspiro nas águas do Mediterrâneo, como o menino da camiseta vermelha. Mexicanos morrem todos os dias tentando cruzar a fronteira entre o terceiro mundo e o “American way of life”. Um punhado de gente – que sequer soube por quê – teve como última imagem desse mundo amargo uma bala em sua direção logo ali, em Osasco. Aqui mesmo, no Santa Cândida, uma grávida e um menino de 12 anos foram baleados por passageiros um carro que passou pela rua que caminhavam, e ficaram com os tiros que eram encomendados a alguém – não se enganem, a encomenda chegou, e ele morreu.

Exagero? Só estou falando das tragédias que chegaram a ser notícia. O corpinho inerte de Aylan compadece tanto porque, além de retratar a infâmia que é a morte de uma criança, lança um holofote sobre todas as crueldades que optamos por deixar no escuro, e sequer sentimos remorso por isso. Talvez estivesse passando novela ou Masterchef na hora, ou tivesse alguma estreia muito boa no Netflix. Pode ser também que estivéssemos de cabeça baixa sobre nosso livro de colorir, ignorando o cinza da vida real.

Antes que me venham com essa, não, não #somostodosAylan. A cada vez que ignoramos a miséria alheia, por menor que seja, estamos muito mais perto de sermos, nós todos, Europa. Como o menino, estamos de bruços, de costas para o mundo, imóveis. Mas, ao contrário dele, estamos bem vivos. Apenas optamos por enterrar as cabeças na areia, talvez em buraco que tenha vista para nossos próprios umbigos.

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