Medos e mitos


Por Júlia Pessôa

05/12/2014 às 07h00- Atualizada 08/12/2014 às 08h47

Tenho certeza de que sou a pessoa mais medrosa que existe. Você me conhece? Prazer, sou a maior borra-botas da sua lista de contatos. Dentre as infinitas coisas que temo nesta vida, costumo dizer que minhas maiores fobias vêm em uma trilogia – algo que já virou piada entre meus amigos. “De que você tem medo, Júlia?” “Cachorro, mendigo e capeta”, respondo, sem pestanejar. Antes que seja rotulada de preconceituosa, explico: as palavras designam, na verdade, categorias, exceto pelos cães, que temo patologicamente desde minhas memórias mais antigas.

Não, não odeio cachorros, detesto vê-los maltratados e sim, compadeço-me de cães de rua com fome, sede, frio, ou qualquer que seja a mazela. Mas a presença canina, por menor que seja o exemplar, me tira do sério, me paralisa, me faz subir no primeiro móvel alto à prova do bicho. Fazendo minha autoanálise, acredito que isso venha da minha infância, em boa parte passada no sítio de minha Vó Nazinha em Levy Gasparian. Nunca fui mordida, mas havia dois cachorros, Simbad e Igor (tradição familiar: animal com nome de gente), que, quando soltos à noite, ninguém mais podia sair ao quintal. Só quem lidava com eles era a vó e o caseiro. E talvez seja por isso que até hoje eu me esquive de pinschers e poodles da mesma forma que de pitbulls e dálmatas.

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Sobre os mendigos, também preciso ser mais clara. Óbvio que me corta o coração ver gente sem teto, sem comida, sem ter o que vestir e, na verdade, sem posse alguma. Esse é um termo categórico, que se dirige especificamente a andarilhos que “mexem” com as pessoas que passam, às vezes até fazendo piada. Sou de cidade pequena, onde, segundo reza a lenda, sempre há um “doido de rua”, como assim se costuma dizer – e alguns nem vivem nela, mas vagueiam por suas calçadas, dia e noite. Dos personagens que circularam a esmo pelas vias da minha Três Rios enquanto eu por lá vivia, pode ter certeza que 100% já me abordaram. Recordo-me bem de um, que sempre trajava um chapéu preto de feltro, a quem eu e as meninas (em qualquer fase da vida, há a instituição “as meninas”) chamávamos de “Homem do chapéu”. Certa vez, com um toco de madeira de todo tamanho em riste, ele passou ao meu lado, parou, virou-se novamente para mim e berrou: “Vou matar todo mundo com esse pau!”, ao que corri mais que queniano em dia de São Silvestre, chegando em casa de perna bamba e coração na boca.

A última categoria, “capeta”, começou com meu pavor de filmes com temática satânica – tipo “O Exorcista”, “O bebê de Rosemary” e afins. Não os vi e nem verei, apesar de certas tentativas falhas motivadas por pressão social durante a adolescência. Na verdade, essa é uma classe de medo muito mais ampla e cuja nomenclatura ficou injusta, pois se refere a qualquer manifestação sobrenatural – e digo isso com todo respeito às religiões e credos que as inclua. Até porque, se temo, é porque acredito e respeito muito.

Mas sou do tipo que quando ouve um barulho em casa, em vez de achar que foi o vento ou a TV, tem certeza de que foi “algo do além”. Se estou sozinha em casa, sempre durmo com alguma luz acesa. Quando a Vó Nazinha, aquela do sítio, morreu, eu tinha uns 15 anos. Sempre fui, desde que nasci, um xodozinho dela (hoje, burra velha, reconheço e admito). Na época, apesar de toda a dor de ter que deixá-la ir, lembro-me de pedir muito, mas muito mesmo, que ela não “aparecesse” para mim. Porque sabia que teria medo, que não tinha preparo para viver isso. E talvez não tenha até hoje. Sempre fazendo minhas vontades, Vó Nazinha obedeceu.

Certa vez, contando o caso para uma grande amiga espírita, ela disse que minha avó jamais se manifestaria de maneira que me assustasse. (Não sem antes, claro, me dizer o quanto era infundado meu temor). Pouco tempo depois, sonhei que estávamos todos, eu e minha família enorme, no sítio. Minha vó chegava, com uma cara ótima, de quem acaba de voltar de férias, e nos deixava  estarrecidos, até que alguém, talvez uma de minhas tias, perguntava:

– Mamãe, “ondié” que a senhora andou? Todo mundo se acabando de sofrer, achando que a senhora tinha morrido!
E minha avó, sempre fanfarrona em vida e mineira de Guarani,  respondeu, no meu subconsciente, honrando a tradição:
– Estava mexendo com umas coisas aí, mas é segredo. Coisa minha. Me deixem, uai! Tô aqui, num tô?!

E desabávamos de rir.
Acordei com um afago tão grande na alma que, desde então, tenho sido vista, com alguma frequência,  acarinhando cachorros e batendo papo com andarilhos.

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