A revolução das onças


Por Júlia Pessôa

05/05/2019 às 07h00

Como boa juiz-forana de direito embora não de nascença, é claro que estou acompanhando cada reviravolta da aparição da onça do Jardim Botânico. Sabendo que a felina deu as caras por aqui, consegui, por exemplo, driblar meu pessimismo, por uns instantes, e esquecer, ainda que por um lapso de tempo de que querem nos negar um direito existencial, o de pensar. Por trás de levianas justificativas tecnicistas, há, clara como o dia, a intenção de que a população seja impedida de se emancipar pelo conhecimento, justamente nos lugares onde ele é gratuito: as universidades públicas. Eu não acho que a única forma de sabedoria é a que vem do ensino superior, jamais. Mas tenho certeza absoluta que forma alguma de ciência, no amplo sentido de saber, deve ser (ainda mais) negada a quem quer que seja. Querem que nos tornemos maquininhas prontas para reproduzir regras em um mercado de trabalho cada vez mais saturado. Querem que o ensino superior forme para “devolver” à sociedade: construir um prédio, salvar uma vida, “gerar empregos” (piada pronta). Como se mesmo por trás de cada um destes conhecimentos não houvesse também reflexão e filosofia, tão demonizados nos tempos inacreditáveis em que vivemos. E como se a docência e a pesquisa, atuação profissional de muitas das formações que, segundo a falácia tomada como verdade, não “devolvem à sociedade e só gastam dinheiro de impostos”, fossem desnecessárias, menores, até nocivas. Mas toda vez que a onça aparecia, eu era salva dos meus pensamentos.

Outra coisa que vem me divertindo são as teorias sobre a aparição da bicha. Meu amigo Diego, que é biólogo, ficou encantado e perplexo, já que há somente poucas centenas da espécie na Mata Atlântica, e elas não aparecem aqui na Zona da Mata há cerca de 80 anos. E ainda me deixou boquiaberta com a informação de que ela é a maior felina das Américas, terceira do mundo. Outro amigo, o Anderson tem certeza que ela é juiz-forana da gema, nasceu lá no Jardim Botânico, e que em breve ouviremos relatos sobre a descoberta de seus pais e irmãos – mas o Diego disse que é muito improvável. O brilhante Del Guiducci destrinchou em sua coluna aqui na Tribuna a “tiuria” criacionista sobre a onça, e eu concordo que não soa implausível nestes tempos de se negar a ciência, o aquecimento global e a esfericidade da Terra.

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Eu muito humildemente também proponho minha hipótese, respaldada pela implacabilidade da sabedoria popular. Diz-se, quando alguém fica pau da vida, possesso, irritado, pistola, fulo das calças, que a pessoa “virou onça”. Pois eu não duvido que, diante de políticas que fazem o país se enfiar em um abismo de esterco cada vez mais fundo, alguém como eu, que não tem mais onde sentir, raiva, vergonha e tristeza tenha, de fato, virado a celebridade animal do Jardim Botânico. Se for o caso, algo me diz que podemos esperar, não daqui a muito tempo, por um bando enorme de felinas pintadas correndo por aí, livres do castigo que é viver vendo o Brasil em eterna marcha-ré. Pode ser que eu esteja errada, mas algo me diz que George Orwell, que entende dos paranauês de bichos e política, aconselharia a não cutucar com vara curta.

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