“Ói nóis aqui travêis” ou sobre cabras e bodes


Por Júlia Pessôa

04/03/2018 às 07h00

Semana passada “não teve coluna”, mas tal qual os Demônios da Garoa, grupo de samba da paulicéia desvairada que amo desde criança, “Fingimos que fumos e vortemos / Ói nóis aqui traveis”. A semana que se anuncia, certamente cheia de publicidades com muito cor-de-rosa e flores, junto a bobagens tachadas de como “vocês enfeitam o ambiente” e “obrigado pelo toque feminino”, tem me feito pensar muito sobre essa luta diária que é ser mulher. (E digo isso sabendo que estou no topo da pilha de privilégios, por ser branca, hétero, cis e de classe média). E cada dia mais chego à conclusão de que Simone de Beauvouir, feministona de raiz, tem mesmo razão: “Não se nasce mulher, torna-se”. E ousaria acrescentar, Simone, é na marra.

É na marra e muito cedo que aprendemos, e carregamos para a vida toda, que nossas liberdades são cerceadas e nossa autonomia sobre nós mesmas é desrespeitada desde a infância. Com pais que afirmam, após o nascimento de sua garotinha: “passei de consumidor a fornecedor”. Não muda muito com pai de garotos, que anunciam o “bode” à solta e aconselha prender as “cabras”. Como se a razão de nossa existência fosse para o consumo de machos-bodes incapazes de controlar seus próprios desejos. Eu poderia falar muito, e encher todas as páginas deste jornal sobre o gosto azedo que tem o caminho de tornar-se mulher, que tentam encobrir com chocolates no dia 8 de março. De passos apressados em ruas desertas a “vagabunda”, como resposta para qualquer discussão em que a outra parte não tenha capacidade de argumentar.

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Mas hoje eu só quero pensar em mulheres que fortalecem mulheres. Nas que mostraram a cara, os peitos, que queimaram sutiãs e até perderam a vida para que tivéssemos direitos que hoje parecem sempre terem existido. Nas que abriram mão de suas individualidades a tal ponto de perderem seu próprio nome, a quem chamamos de mãe – e não raramente fazem isso sozinhas. Quero lembrar da estranha que caminha do nosso lado em uma rua deserta, só para que não estejamos ambas sozinhas. Nas que, ainda hoje, sob xingamentos furiosos nas ruas e na internet, peitam o patriarcado e abrem caminho para que sejamos mais livres, mais respeitadas, mais felizes. Nas que compartilham das nossas lágrimas, sejam vindas de uma crise de riso ou de um pranto impossível de ser contido. Nas que fazem o mundo inteiro caber em um abraço, seja de consolo, saudade, de parabéns por uma conquista, de bobeira, de “eu te entendo”, de “não concordo, mas tô aqui.”

Na última sexta, fiz mais duas tatuagens porque me apaixonei à primeira vista: uma cafeteira italiana e uma xicrinha, lindas. Mandei as fotos para a Fefê, uma grande amiga que mora longe, que achou os desenhos “a minha cara”, e explicou: “Agora toda vez que tomo café me lembro de você, e em tantos que a gente tomou, em tantos lugares.. rindo, chorando, falando, em silêncio. Me bate um saudosismo.” E eu também me lembrei dos tantos cafés que tomamos, em tantas fases da vida, em tantos estados emocionais, em tantos dias diferentes. Um filminho.

Então, apesar de tanta porrada, tanto direito negado, tanta violência, tanto assédio e tanta luta ainda pela frente neste tornar-se mulher diário… eu desejo, de coração, que todas do mundo tenham alguma mulher que a faça sorrir, respirar fundo e ir em frente, cada vez mais fortes. Como eu, a Fefê e nosso café. A vida é tão boa que sou cercada por um exército inabalável delas – com ou sem café -, que me tornam melhor, mais segura, mais bonita e mais corajosa. Mais mulher.

Vamos juntas, meninas. E alguém por favor avise aos bodes que as cabras estão soltas e indomáveis.

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