Até 2017


Por Júlia Pessôa

04/02/2017 às 07h00- Atualizada 09/02/2017 às 10h58

O tempo é sorrateiro mesmo. Outro dia mesmo, quando alguém mandava um piadão no WhatsApp ou em qualquer outra rede social, a gente mandava um “kkkkk” (que odeio, aliás) e dizia “Rindo até 2017”, como se tal ano fosse um indicativo de um tempo muito distante, uma risaiada longa que só. Abrimos outra aba, fomos olhar o Instagram, reclamamos no Twitter, fizemos umas selfies, e, quando nos demos conta, 2017 chegou. E não estamos rindo. Não faltam, entretanto, tentativas equivocadas.

Na tela do meu computador e do meu celular, surgiram, na semana que se passou, piadas sobre a anunciada morte cerebral da ex-primeira dama Marisa Letícia, esposa do Lula. Para manter minha sanidade mental, prefiro acreditar que a facilidade de compartilhamento de conteúdo na internet tenha nos robotizado. Assim, chegamos ao ponto de compartilhar qualquer informação sem o mínimo de reflexão sobre o que ela diz ou representa.

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Ser capaz de debochar do sofrimento de quem precisa optar por desligar os aparelhos de alguém que ama indica que estamos perdendo os últimos traços de humanidade. Não interessa se estamos falando da mulher do Lula, do Aécio, do Bolsonaro ou do Freixo. Estamos falando de alguém que perdeu alguém. E não, isso não é papo de “esquerdocomunista”. É o que nos separa da barbárie: respeito à dor do outro.

Não entra em minha cabeça o mesmo país que se comoveu em massa com a desgraça que aplacou a Chapecoense conseguir dizer, também em massa, nas redes, que Dona Marisa morrer “é pouco”. Também não entendo quem acredita que aborto é assassinato; mas não hesita em dizer “Tchau, querida” em comentários de notícias sobre a fatalidade. Não adianta compartilhar piada sobre o fato em grupos do WhatsApp, provavelmente o da família, e esquecer-se de outra família, a que teve que decidir que os órgãos de uma pessoa amada devem ir para alguém que precisa. Não se trata de fazer “defunto virar Deus”, como têm dito na covardia digital. Não precisa se sensibilizar, se compadecer. É só ter integridade. Não sou imbecil a ponto de pensar que infelicidades como esta não são usadas politicamente, mas este é um luto pra gente viver adiante. Por agora, é hora de deixar quem tem o da morte vivê-lo.

Recuso-me a cair no engodo de “imagina se fosse sua mãe/avó/tia/filha/prima/amiga” para reforçar o argumento. Se chegamos ao lamentável ponto em que só despertam empatia as desventuras que aplacam quem nos é próximo, falhamos como seres humanos. Talvez pela sua crua verdade, o cronista Otto Lara Rezende sempre refutou a autoria de uma frase que Nelson Rodrigues lhe atribuía, “o mineiro só é solidário no câncer.” Passaremos a vida sem saber se o escritor foi quem questionou a boa-fé do mineiro. Do brasileiro, podemos ter certeza que a solidariedade não chega sequer com a morte.

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