Da última vez que assisti a uma novela capítulo a capítulo, minha idade ainda começava pelo dígito 1 e eu vivia sob as asas da minha mãe, na minha Três Rios natal. Agora que estou com trinta e muitos, a poucos anos do proverbial “enta” infinito, me vejo aqui aguardando todos os dias a próxima dose de Pantanal. (E quando perco, recorro ao streaming, afinal, posso não ser jovem, mas sou moderna.)
Sei lá o que me pegou nessa trama repetida da original de 1990, quando eu nem ler sabia ainda. Pode ser a nostalgia de narrativas televisivas que me remetam às da minha infância, com um elenco enorme em um lugar distante e muitos conflitos familiares. Pode ser um escapismo do cotidiano horrível de ser brasileira em 2022, mergulhando num realismo fantástico em que gente vira onça, sucuri, faz pacto com o cramulhão, e talvez o aspecto mais absurdo: recusa o uso de TV e internet, a despeito da fortuna.
Felizmente, o mundo, embora não pareça e dê todas as evidências de seu retrocesso, vai mudando e, por isso, certos recortes normalizados na versão de Pantanal em 1990 são inaceitáveis hoje. Um deles é o tratamento dispensado pelo vilão Tenório à esposa Maria Bruaca, traída, humilhada, ridicularizada e diminuída pelo marido. Tudo bem, faz parte do roteiro. Mas desde o início, a postura de Tenório no remake é abordada como intolerável e não como pressinto que era em 1990, “o jeito dele”, inclusive na alcunha dada à mulher, “bruaca”.
Discussões sobre monogamia, posse e patriarcado à parte, nunca se torceu tanto por um chifre na ficção como a bela galhada que Maria dita Bruaca meteu na cabeça de seu marido. E nunca se sofreu tanto a cada culpa que a personagem sente quando assombrada por vozes que sopram-lhe ao ouvido: “mulher direita não faz isso”. Haja coração na Copa Pantaneira do Galho! E a torcida de Mary Bru, como foi apelidada no Twitter, é imensa. Pudera.
Só nos últimos dias vimos, sem filtros, o quanto somos criadas numa sociedade que exige que sejamos submissas e silenciosas, mesmo quando somos violentadas por nossos parceiros, parentes, chefes, por completos desconhecidos ou pelo Estado. Espera-se que sirvamos, ainda que à nossa revelia, a homens que nos odeiam a despeito de serem nossos cônjuges ou representantes de instituições que deveriam resguardar nossa integridade física, emocional e mental. E definitivamente, nos condenam a carregar os frutos dessa violência no ventre, no curriculum vitae, debaixo do mesmo teto, pela vida afora.
A bruaca da ficção é uma metáfora de tanto silenciamento imposto diante de uma vida de violações. E já não somos bestas de esperar que a justiça, tão masculina seja com j ou J, vá fazer alguma coisa por nós. Daí a satisfação coletiva a cada vez que o vilão é feito de corno. Vai, Maria!
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