A imortalidade de Pelé está nos arroubos falíveis


Por Gabriel Ferreira Borges

27/10/2020 às 07h00

A história reconhece atletas pelas próprias conquistas, mas, no limiar da sentença, o tamanho de qualquer esportista é acusado por meros detalhes. Embora tais detalhes possam denunciar insucessos, a mera genialidade por trás de simples gestos denuncia a grandeza de um personagem. Desde a atuação soberba em uma final de Mundial aos 17 anos aos mais de 1.200 gols, as conquistas de Pelé são nada menos do que óbvias. Mas a imortalidade de Pelé está registrada nos anais da história do futebol por arroubos felizmente falíveis. Pela capacidade dissimulada de eternizar milésimos de segundos.

Talvez o maior arroubo de genialidade de Pelé seja o drible de corpo no uruguaio Ladislao Mazurkiewicz na Copa do Mundo de 1970, quando, ao sair cara a cara com Mazurkiewicz após lançamento de Tostão, Pelé opta por tirá-lo do lance sem ao menos tocar na bola. Em um ato de humilhação elegante, o Rei simplesmente abdica de dominá-la apenas para correr em direção oposto ao rumo da bola. E, finalmente, apanhá-la depois de mudar o corpo de direção em um movimento tão simples que é capaz de esconder a complexidade de uma atitude brusca. Mazurkiewicz, enquanto isso, ajoelhado no semicírculo da grande área, certamente esquecera o próprio nome e até o dos pais.

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Na mesma Copa, Pelé protagonizou outros lances assombrosos. Pelé, ali, no México, já era Pelé, diga-se, ou seja, uma douta divindade de uma liturgia politeísta. Um sucessor da linha genealógica de Arthur Friedenreich, Leônidas da Silva e Zizinho. Foi em 1970 que, por pouco, ele não encobriu o arqueiro tchecoslovaco Ivo Viktor em arremate do meio-campo ao percebê-lo alguns metros adiantados. E, depois, teve uma cabeçada ridícula defendida à queima-roupa pelo inglês Gordon Banks. Nos mais arredios pesadelos, Andrada, castigado pela história como o goleiro que levou o milésimo gol de Pelé, certamente desejaria a mesma sorte que Mazurkiewicz, Viktor e Banks.

Dentre tantos gols antológicos, as memórias sobre Pelé são inesgotáveis, mas são os arroubos de genialidade que condecoraram um preto retinto na maior figura de todos os tempos de um esporte branco desde o berço, e, no Brasil, instrumento de políticas eugenistas do próprio Estado. Como escreveu Sérgio Rodrigues em “O drible”, Pelé não faz o certo, mas, sim, o sublime. O Rei refina o futebol à sua essência mais rarefeita. Cabe ao tempo, controlado por Pelé como ninguém até então fizera, restituir ao Rei ainda em vida toda as glórias de seus súditos.

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