Não há contradição no futebol ‘pós-pandemia’

Não é exatamente a ausência de torcedores nos estádios que me rouba a atenção, mas, sim, como há a necessidade de naturalizá-la


Por Gabriel Ferreira Borges

04/08/2020 às 07h08- Atualizada 04/08/2020 às 21h41

Não me lembro quando fui a um estádio de futebol pela primeira vez. Certamente foi ao Elias Arbex. E posso assegurar que o clube da cidade ainda chamava Atlético de Três Corações. É que depois virou Clube Atlético Tricordiano. Ao que me lembro, havia muitas dívidas, mas eu ainda era muito pequeno para entender dessas coisas de passivo trabalhista. Hoje, como me explicou outro dia meu pai, novamente é Atlético de Três Corações. Verdade seja dita, nunca deixamos de nos referir ao clube como Atlético. E, como vinha elucubrando sobre a minha primeira vez em um estádio, o jogo talvez tenha sido um amistoso contra o Tupi. Do estádio mesmo, em carne e osso, só assistia, na minha infância, ao Atlético.

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Enquanto deveria ser ressaltada como uma forma de luto, a melancolia de um estádio vazio é escondida até por torcedores de papelão (Foto: Pedro Souza/Atlético)

Três Corações não é exatamente perto de Belo Horizonte. Tampouco de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Os ingressos eram vendidos antecipadamente em bares espalhados pela cidade, como o do João Vaca ou do Jaime. Ou, então, na hora, no único portão de acesso ao estádio. O Elias Arbex tem apenas duas arquibancadas, ambas emparelhadas às linhas laterais. Somente uma é coberta. Nos amontoávamos, então, para não quarar no sol – os jogos em casa eram sempre aos domingos, às 10h. Dizem que a capacidade máxima do estádio é de cinco mil pessoas. Sempre acreditei ser menos, ainda que por muitas vezes fazia-se caber mais. Somente no Elias Arbex meu pai não me repreendia em encher a boca de palavrões, embora ele os falasse como quem diz que bebe apenas socialmente.

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A qualquer gol de Jonatas Obina eu era sovado por algum adulto desconhecido em meio a um cheiro de chapa de churrasquinho de carne de boi. O Elias Arbex chegou a ser interditado certas vezes. Algum problema com a iluminação e a segurança do alambrado. Ao menos o estádio nunca chegou ao ponto de cometer um placar eletrônico desses com as letras e os números em luzes alaranjadas. O sistema de som por exemplo era um sujeito que ficava sobre um palco com um microfone plugado em uma caixa modesta – as substituições eram quase inaudíveis. E, posso estar enganado, em dezenas de jogos, nunca vi um torcedor de papelão naquela arquibancada. Certa vez o presidente colocou na cabeça que apresentaria o craque da temporada em um helicóptero. E assim o fez. O problema é que quem desembarcou no círculo central foi Dinelson.

As lembranças da juventude me ocorrem ao assistir aos jogos em estádios completamente vazios. Mas não é exatamente a ausência de torcedores que me rouba a atenção, mas, sim, como há a necessidade de naturalizá-la. Eduardo Galeano diz, em “Futebol ao sol e à sombra”, que, após as partidas, o estádio fica sozinho e o torcedor também volta à sua solidão, como “um eu que foi nós”. “O torcedor se afasta, se dispersa, se perde, e o domingo é melancólico feito uma quarta-feira de cinzas depois da morte do carnaval.” Há uma busca sórdida em naturalizar a melancolia de um estádio vazio. De esconder o luto de arquibancadas vagas em cânticos projetados em alto-falantes e em torcedores de papelão. Não existe contradição nem equívoco: não há vaias em substituições, xingamentos aos árbitros ou uma descoordenação ao entoar qualquer música. É um atestado de culpa de um futebol que superou a pandemia antes mesmo de ela ir embora.

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