Viver, modo indicativo


Por Júlia Pessôa

26/07/2015 às 07h00

Sempre fui aficionada por listas. De compras, itens na bagagem, tarefas, matérias que já fiz/farei, ideias para esta coluna. Já listei a alimentação diária em dietas nem sempre honrosas; os defeitos de paixõezinhas adolescentes no intuito de esquecê-las; metas para um ano que acabava de começar; e, óbvio, músicas que não poderiam faltar nas coletâneas que eu gravava em fitas cassete.

Tenho a – talvez falsa – sensação de que enumerar as coisas me dá certo poder sobre elas, quiçá mais autonomia sobre minha vida. (Gravar a canção preferida no momento exato em que ela tocava no rádio dava uma onipotência indescritível, como se eu mandasse no destino).

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Meu problema é com o imperativo. O “ter que”, o padrão, a norma, tão banalizados nos dias de hoje: “Faça isso, faça aquilo”. Começam dizendo qual item de moda você não pode deixar de ter – o petulante must have. Seguem listando filmes que você tem que ver, que lugares tem que visitar, o corpo que tem que ter, 20 coisas pra fazer antes dos 20, 30 antes dos 30, 40 antes dos 40… Se seguirmos esse ritmo, teremos feito pouca coisa por vontade própria aos 50. Argh, preguiça desse desarranjo intestinal de regras!

Exageros meus (como sempre) à parte, talvez o reinado absoluto do modo imperativo seja reflexo da nossa arrogância em dar sempre pitaco na vida alheia, em achar que podemos “ajudar” alguém a ser sua melhor versão. Desrespeitamos individualidades frequentemente, ainda que sob o mais nobre dos intuitos: vemos uma bela foto de viagem no Instagram e dizemos: “vá a tal lugar”, “visite este outro”, “não deixe de fazer tal coisa”…e muitas vezes deixamos de lado o simples “Boa viagem”. “Faça a dieta tal”, “malhe na minha academia”, dizemos para amigos e amigas acima do peso, cheios de boas intenções, sem nos tocarmos que podemos estar cutucando alguma ferida. Imperativos, imperativos…

Nas listas e na vida, vale ter muito cuidado com esse modo verbal, que não só tem o rei na barriga, mas pode deixar corações no particípio: partidos. Em meu eterno papel de café-com-leite no pique de viver, tenho dado cada vez mais valor ao que é direto. Sem firulas, sem ordens, sem palpites. “Faço, fiz, farei”. “Faz, fez, fará”.

Conjuguemos mais a vida no modo indicativo, ainda que nem todos os tempos possam ser perfeitos.

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