A vida não é selfie, você não entendeu


Por Júlia Pessôa

05/04/2015 às 07h00- Atualizada 06/04/2015 às 08h09

Não, amigos, não vou fazer uma carta aberta condenando os tiradores de selfie e nem o boi-de-piranha do momento, o pau-de-selfie. Verdade, a profusão das autoimagens em nossas redes sociais é sim, um tanto irritante – principalmente quando elas revelam o aparato, o bendito pau, originalmente projetado para não aparecer nas fotos. Mas igualmente desagradável é a cruzada que se faz contra os adeptos delas. Estive pensando nas autofotos outro dia, e em como elas são, de certa forma, a expressão-mór do nosso narcisismo: “Olha eu aqui nesse lugar turístico incrível”, “Olha eu de férias e você trabalhando”, “Olha que belezura fiquei com esse filtro do Instagram” (Quem nunca? Eu já!).

Nos autorretratos, ainda mais que nas fotos tiradas por outras pessoas, deletamos aquelas em que saímos com aquela papada estranha, uma olheira de cansaço, de olho fechado ou com o clássico braço gordo, entre tantos defeitos que achamos em nós mesmos. Nas fotos em grupo, muitas vezes o momento tem muitos mais valor do que qualquer imperfeição. Na selfie, queremos ser a melhor versão possível do nosso eu. Porque ali só tem “eu” – no singular ou plural. Acho natural que queiramos compartilhar somente o nosso melhor nesse latifúndio (às vezes improdutivo) sem porteira chamado internet. Afinal, quem quer fazer má publicidade de si mesmo? A meu ver, é só um reflexo de nossa vida off-line, na qual também nos esforçamos para não tornar públicas nossas fraquezas, nossas derrotas e nossas frustrações. É apenas humano.

PUBLICIDADE

Preocupa-me, entretanto, quando a lógica da autofoto é transportada para a vida real, e ficamos obcecados pela ausência absoluta de defeitos.  Daí surgem tantos distúrbios alimentares em função de padrões de beleza inatingíveis. Tantas pessoas infelizes por serem incapazes de reconhecer suas vitórias, aflitas sempre em alcançar o que ainda não conquistaram. Gente cronicamente frustrada, por não ter cumprido o objetivo autoimposto de ser o melhor profissional, a melhor mãe, o melhor amigo, a mais bonita, o mais rico. A busca por perfeição a qualquer custo é um buraco sem fundo, em que muitas vezes a gente teima em cair.

Fazendo mudança esses dias, entre tantas caixas, sem querer quebrei parte da moldura de vidro de um quadro que tenho do John Lennon, meu Beatle favorito. Rapidamente peguei-o, já pensando em reparar os estragos, até que, nem sei por quê, pendurei-o na parede de novo. Nunca esteve tão parecido com tudo que li sobre Lennon: fragmentado, imperfeito, com as marcas das quedas à mostra. Deixei o conserto de lado por uns tempos, e percebi que o quadro nunca esteve tão real, tão belo. Como qualquer um de nós, em nossas tantas imperfeições.

Os comentários nas postagens e os conteúdos dos colunistas não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir comentários que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.