Outras ideias com Walter de Souza Pires


Por MAURO MORAIS

29/03/2015 às 06h00- Atualizada 19/02/2018 às 16h42

Sr. Walter está na feira há mais de 40 anos

Sr. Walter está na feira há mais de 40 anos

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Agora, quando abre esse jornal e lê essas palavras, um homem com seus muitos cabelos brancos já preparou tudo para colocar sua voz no ar da Avenida Brasil. Se demorou um pouco a ler, é bem capaz de esse senhor já ter chegado em casa. As ligeiras quatro horas em que Walter de Souza Pires passa ao microfone, sentado em sua Kombi da década de 1970, dependem de horas de trabalho sob a luz da lua. E valem uma vida inteira. “Domingo chego à 1h da madrugada, porque tenho que montar tudo antes dos feirantes. Às 2h30, testo tudo, entro na Kombi e tiro uma soneca até 6h. Quando acordo, ando pela feira e entro no ar às 8h”, conta o senhor de voz grave e aveludada, ouvida na feira há quase quatro décadas.

“Antigamente, eu tinha uma barraca na feira e vendia doces e queijos, mel de abelha puríssimo e caramelos de Coronel Pacheco. Também vendia os caramelos de banco em banco e entregava no comércio. Depois disso, cismei de botar uma caixa de som em baixo da barraca, só para o freguês ouvir. Arrumei um microfone pequeno, na brincadeira, e fiz minha própria propaganda. Um dia apareceu uma senhora chorando, me pedindo para anunciar que os filhos dela sumiram. Ali tive a ideia de montar um serviço de alto-falante na feira”, recorda-se Walter, hoje aposentado com apenas um salário. “Isso não tem problema, porque continuo trabalhando”, orgulha-se ele, que entremeia anúncios pagos (atualmente são dois fixos) e comunicados de utilidade pública (crianças e objetos perdidos são os mais recorrentes), além de música sertaneja, inclusive promovendo artistas locais.

Tempos do esterco

Filho de uma família humilde, de cinco irmãos, Walter não chegou a estudar – “Aprendi tudo na escola do mundo”, diz – e, desde muito cedo, precisou trabalhar. Aos 13, começou recolhendo esterco em um pasto no alto do São Pedro, bairro para onde mudou-se ainda criança. Ele vendia para um japonês, dono de uma enorme horta na vizinhança, que depois lhe contratou para plantar, colher e “levar as mulas no pasto”. “Fui pintor também e, aos 20 anos, trabalhei no comércio. Ia para Goianá, Coronel Pacheco, buscava ferro velho, laranja e outras coisas para vender aqui. Naquele tempo, tinha a (companhia) Leopoldina, e eu comprava um pomar de laranjas, apanhava, ensacava e despachava. Chegava na Central do Brasil, descia tudo, colocava numa carrocinha e ia vender na feira”, lembra-se. Era a década de 1960, e a feira ainda acontecia na Rua José Calil Ahouagi. E Walter mudou-se, com ela, para a Avenida Brasil. “Tem uma lei que me garante ali das 8h às 12h, sem passar dos 70 decibéis. Em volta, nesse horário, ninguém pode ligar som alto”, diz o homem da segurança que transparece na voz.

Barraca na TV

Conhecido pela qualidade do que vendia e pelo jeito extrovertido, o feirante foi convidado a participar do programa de Anuar de Sales, na finada TV Industrial, montando sua barraca no estúdio. A desenvoltura também lhe rendeu outras participações: “Fiz um monólogo no programa do Teixeira Neto, concorrendo com cantores de músicas populares, e ganhei o segundo lugar”, conta, mostrando o reconhecimento também presente em uma menção honrosa recebida na Câmara e na Comenda Henrique Halfeld. Walter, aquele que se exibe elegantemente aos domingos, ganhou, naturalmente, a notoriedade de um grande comunicador.

A cadela Waldiléia

Pai de cinco filhos, com dez netos e três bisnetos, Walter não pensa em aposentar suas sete cornetas de 100 mil watts, espalhadas pela feira em três postes. É esse trabalho de locução que lhe deu o conforto do presente. “Criei minha família toda trabalhando na feira, dei uma casa para cada um dos meus cinco filhos e adquiri essa casa, depois de comprar e vender outras”, emociona-se o marido de Mariléia, com quem está casado há 51 anos (completados no último sábado). Hoje, os dois dividem uma grande casa no alto de uma rua no São Pedro, onde antes era o tal pasto. Um pouco maior que um sapato, Waldiléia também mora na casa. Resolvo perguntar o motivo do nome da agitada cadela: “Walter mais Mariléia”, ri ele. Divertido, Walter é avesso às lamúrias. É entusiasmado no domingo de manhã e no resto das horas todas. “Alguns feirantes me falam: ‘Seu Walter, como vamos fazer quando o senhor morrer? A feira vai ficar muito triste!’. E eu digo: ‘Olha, é só você ter fé e rezar, pedindo a Deus para eu não morrer. A solução é essa'”, brinca. Como sua voz, Walter quer ecoar.

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