O brasileiro é o povo mais feliz com seu corpo


Por Júlia Pessôa

28/09/2014 às 06h00- Atualizada 29/09/2014 às 14h51

Especialista falou sobre a crise vivida tanto pela masculinidade quanto pela feminilidade em seus sentidos clássicos

Que a fala mansa e os gestos minimalistas não permitam interpretações equivocadas: o pesquisador francês David Le Breton é um homem de frases e conceitos fortes, muitas vezes “brutais”, termo usado por ele próprio. Em visita a Juiz de Fora, na semana passada, para o seminário “Corpo, gênero e sexualidade”, promovido pela UFJF, o antropólogo, sociólogo e titular da Universidade de Estrasburgo II falou sobre sua área de excelência: o corpo no contexto social. Entre as mais de 20 obras publicadas sobre o assunto está “Adeus ao corpo”, em que Le Breton  propõe que o corpo é tomado como simples suporte da pessoa, algo que pode e deve ser aprimorado, uma matéria-prima na qual se dilui a identidade pessoal. “Hoje, na minha opinião, há um dualismo que divide a pessoa e seu corpo. A pessoa vê o corpo como uma outra coisa, uma matéria-prima para se construir uma identidade”, diz ele em entrevista à Tribuna.

Segundo Le Breton, esta divisão entre ser e corpo fica muito nítida em tempos de exacerbado culto ao corpo, em um processo de busca pelo jovem, pelo perfeito e pelo belo, que costuma ser muito mais cruel para as mulheres. “A mulher vive com uma culpabilidade inerente apenas ao fato de ser mulher, de achar que se não for bonita, ninguém vai amá-la, algo que começa desde muito cedo. Quando uma menina se sente gorda, ou acha seu rosto feio, acredita que não há, no mundo, um lugar para ela. O menino, o homem não. Ele se olha no espelho e pode se ver pelo que é, seja como for. A mulher se vê no espelho pelos olhos dos outros”, observa o pesquisador.
Para ele, todas as formas de intervenção corporal – que vão desde brincos comuns, piercings e tatuagens a cirurgias de mudança de sexo, por exemplo- refletem uma  tomada de posse sobre o corpo. “É também uma afirmação daquele corpo com a identidade que ele tem: ‘esse é meu corpo, com minhas tatuagens’. No caso dos transgêneros, isso é ainda mais forte: a pessoa cria um corpo para si, o corpo que quis”, pondera Le Breton.

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Sob uma perspectiva a longo prazo, Le Breton acredita que a existência humana desprendida do corpo muito se relaciona com a web. “Existem estudos americanos que consideram a possibilidade de existir sem corpo, como se pudéssemos fazer o download de nossa essência para uma máquina e vivermos sem doenças, sem envelhecimentos e eternamente”, explica o pesquisador.

Na conversa com a Tribuna, Le Breton falou sobre o culto ao corpo, as imposições de uma sociedade ao corpo feminino e considerou o Brasil o país mais “hospitável” (hospitaleiro) em relação ao corpo em seu contexto social, tudo isso em português claro, simpático e que, vez ou outra, se permitiu criar algumas palavras.

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Tribuna – Como o culto ao corpo, amplamente difundido na sociedade e na mídia, afeta o corpo em seu cotexto social?
David Le Breton – O corpo hoje é uma mercadoria. Existe um mercado fantástico sobre ele: os regimes, os esportes, a atividade física, tudo relacionado à aparência. A partir dos anos 1970, o corpo vem crescendo como um setor econômico a ser explorado. Basta ver a popularidade das tatuagens hoje. Nos anos 1970, elas não eram bem vistas, e hoje eternizam a afirmação de uma identidade. Naquela época, também não havia regimes a não ser por motivos de saúde, hoje eles esculpem as pessoas. Essa busca por lapidar um corpo cria um mercado crescentemente promissor, mas também institui no mundo uma tirania na aparência, sobretudo para as mulheres.

– Para as mulheres, o envelhecimento, o sobrepeso, as imperfeições são tabus maiores do que para os homens, correto?
– Sim!  O estatuto do corpo é muito diferente para homens e mulheres. Na nossa sociedade, as mulheres são percebidas como corpos. O homem não, ele é percebido por sua obra, seu trabalho, o que faz de sua vida. A mulher, mesmo que seja uma presidente, ou autoridade, sempre será percebida como um corpo, e um corpo que deve ter uma sedução, uma atração pelos homens.
O corpo dela é uma ferramenta: para o sexo, para gerar filhos, para educá-los. A mulher vale o que vale seu corpo. É uma frase brutal, mas que exprime, eu acho, o mundo de hoje. É  um mundo que vem mudando muito com o feminismo e muitos movimentos deste tipo, mas somos herdeiros dessa forma de dominação masculina e patriarcal. A luta pela liberação das mulheres, também é uma forma de libertação dos homens, porque não é fácil ter que corresponder a um ideal de virilidade a todo tempo. Vivemos uma crise tanto da feminilidade quanto da masculinidade em seus sentidos clássicos, e os corpos buscam exprimir toda a pluralidade destas identidades.

– E em meio a essa pluralidade, como ficam as identidades transgêneras?
– O transgênero é exemplar de uma atitude que abraça a possibilidade de transformar o corpo. O corpo transgênero é uma invenção da pós-modernidade, um corpo fabricado pelos hormônios e pela cirurgia, um corpo que é ferramenta de uma identidade. Se quero mudar de identidade, traduzo isso em mudanças para meu corpo. É um mundo também de individualização de sentidos, cada um inventa significações próprias para seu corpo. Posso ter o corpo que quero, e ninguém pode me impedir. Isso traz algumas consequências, como a necessidade de uma revisão do Direito, que precisa estar de acordo com metamorfoses das pessoas que não era pensáveis há 20, 30 anos.

– Nessa sociedade que valoriza tanto o belo, o ideal, o perfeito, como são vistos corpos julgados como imperfeitos, como o dos gordos, dos idosos e das pessoas com deficiência?
– Penso que temos que pensar as pluralidades e ambivalências existentes no mundo. Uma pessoa gorda pode ser feliz como é, e isso é uma forma de resistência à tirania estética a que estamos submetidos. Há pessoas com deficiência que lutam pelo reconhecimento de sua existência e de sua beleza. No mundo inteiro, há um movimento de mulheres com seus 70 anos reivindicando uma sexualidade, uma beleza, que nada tem a ver com a juventude. Isso é uma felicidade do nosso tempo. É claro que há uma tendência bem forte de fazer prevalecer a juventude, a beleza, a magreza… Mas vivemos em um mundo de muitas dimensões. O que importa é estar feliz na sua pele, e para mim, isso nada tem a ver com o corpo ideal, mas com usar nossa imaginação, nosso desejo.

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– Saiu recentemente um levantamento da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (Isaps), afirmando que o Brasil superou os Estados Unidos e se tornou líder mundial na realização de procedimentos cirúrgicos estéticos. O que isso pode nos dizer sobre a relação dos brasileiros e brasileiras com o corpo?
– Para mim é sempre uma interrogação. Porque acho o que o Brasil é o país mais “hospitável” (sic hospitaleiro) em relação ao corpo. Quando se  caminha nas ruas do Rio, por exemplo, as pessoas estão com o corpo bem à mostra. Ninguém olha torto para uma mulher de 70, 80 anos por ela estar de minissaia ou top. Isso também vale para os homens, que andam sem camisa e não se importam – nem eles, nem os outros – com a barriga. Na praia, há pessoas gordas, com deficiência física, com imperfeições. Ninguém olha, ninguém julga. Há uma felicidade em relação ao corpo. Isso não existe na França. As pessoas iam apontar, condenar, dizer “Meu Deus, como pode uma coisa dessas?! (risos).

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