Nova lei da laqueadura garante à mulher autonomia na realização do procedimento
Até então, mulheres dependiam de autorização dos cônjuges para realizar o processo de esterilização
A partir deste domingo (5), começa a valer a nova lei da laqueadura no Brasil. Com a mudança nas regras, as mulheres que queiram fazer o procedimento não mais precisarão da autorização do cônjuge. A idade para se submeter ao processo de contracepção também diminuiu, passou de 25 anos para 21 anos e não é mais necessário ter filhos para realizar o procedimento.
Contudo, as mulheres que já tenham dois filhos podem passar pelo procedimento em qualquer idade. A esterilização também pode ser feita logo após o parto, mesmo que não se tenha riscos com uma possível nova gravidez. A lei anterior, de 1996, estipulava outros parâmetros, dentre eles, a necessidade do consentimento expresso de ambos os cônjuges (laqueadura, para mulheres, e vasectomia, para homens). Foi somente no fim do ano passado que essa lei foi modificada, dando lugar à sanção da lei 14.443/2022.
Maria Eduarda Frontarolli, dona de casa, foi uma das várias mulheres que realizaram o processo antes da mudança da lei. Com 16 anos, ela teve seu primeiro filho. Quatro anos depois, o segundo. Nesse momento, ela até cogitou fazer a laqueadura, mas decidiu esperar a terceira tentativa para ter uma menina e, em seguida, realizar o procedimento. Embora ela e o marido estivessem em comum acordo, o incômodo de depender da autorização do cônjuge persistiu.
Maria Eduarda conseguiu fazer laqueadura após o parto somente porque já havia passado por cesarianas. Agora, essa realidade vai mudar, é o que esclarece a Secretária de Saúde da Prefeitura de Juiz de Fora. De acordo com a pasta, não haverá mais exigência de duas cesáreas anteriores ou risco à vida em uma nova gravidez, requisitos necessários para o procedimento pela legislação anterior.
Laqueadura durante cesárea é vantagem
Renata Marcato, obstetra e ginecologista, esclarece que a realização da laqueadura durante a cesariana é uma grande vantagem. Isto porque já está em curso um procedimento invasivo que é a cesariana, não sendo necessário outro. Ela destaca, entretanto, que é possível fazer o procedimento não só durante a cesárea. “Após um parto normal a esterilização também pode acontecer.” Inclusive há várias formas de fazer isso. “Através de uma micro incisão com um corte próximo ao umbigo, a mais viável e disseminada que é por laparoscopia ou pode ser feita por via vaginal, tudo depende da disponibilidade para poder executar algum desses procedimentos”, exemplifica a médica.
Com quatro meses de gestação, Stela da Silva Santos, 22, conta que pretende fazer laqueadura pelo Sistema Único de Saúde logo após o parto. Alcançada pela nova lei, agora ela possui esse direito. Em Juiz de Fora, o procedimento pode ser feito gratuitamente nos seguintes hospitais conveniados com o SUS: Hospital Regional João Penido, Hospital São Vicente de Paula, Hospital e Maternidade Therezinha de Jesus e Hospital Universitário.
A jovem, autônoma, ficou grávida a primeira vez em 2018 e agora está à espera do segundo. Por ser solteira, ela desabafa que, caso não houvesse mudança nas regras, não teria um parceiro para assinar, uma vez que não namora com o pai de sua filha. A jovem, convicta de sua escolha pela esterilização, ainda terá que passar por um processo para ter acesso ao serviço.
De início, as mulheres interessadas deverão procurar a Unidade Básica de Saúde (UBS) mais próxima de sua casa, para que possam participar das reuniões de Planejamento Familiar. Nessa etapa, elas terão informações sobre os métodos contraceptivos disponibilizados pelo SUS. Caso identifiquem que a laqueadura tubária é o que mais se encaixa à sua demanda e vontade, elas são encaminhadas para o Departamento de Saúde da Mulher para dar início ao processo de realização do procedimento. Em todas as situações, é preciso respeitar o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico.
Renata Marcato conta que vê as mudanças implementadas de forma positiva. “A gente tem visto cada vez mais jovens tendo filhos e sem acesso a opção da laqueadura”, explica a especialista. A paciente com 21 anos já tem plena capacidade de responder por si, avalia. Para a médica, representa uma grande vitória para as mulheres, porque respeita a autonomia em seu corpo.
No ano passado, 39 mulheres passaram pela esterilização na cidade. Já neste ano, foram realizados, até agora, quatro procedimentos. No entanto, segundo a Secretaria de Saúde do município, a expectativa é que esse número cresça com a maior flexibilização dos critérios.
Conquistas de direitos femininos
O direito sobre o próprio corpo, embora pareça um processo simples, é resultado de uma luta e um esforço de décadas, pelo menos para as mulheres. Para a doutoranda Júlia Pessoa, pesquisadora de gênero e feminismos dos grupos Fegs UFJF e Gece da Universidade de Aveiro, a alteração na lei pode ser vista sobre duas perspectivas. Se, por um lado, é uma conquista fundamental, por outro, ainda é preocupante que só esteja acontecendo agora. “É primordial e coerente que a decisão em fazer uma laqueadura coincida com a maioridade jurídica. É um direito inalienável que as mulheres possam tomá-la sem autorização do cônjuge. É uma ruptura importante com a lógica patriarcal de que os corpos femininos estão a serviço dos homens, seus desejos, suas vontades e suas regras.”
De acordo com o Ministério da Saúde, entre 2019 e outubro de 2022 foram realizados, no Brasil, cerca de 19 mil procedimentos de laqueadura e outros 25 mil de parto cesariano com laqueadura tubária pelo SUS. Isso significa que, ao todo, 44 mil mulheres tiveram que pedir autorização do marido para realizar a esterilização em seu próprio corpo.
Júlia aponta também que o poder de decisão, mesmo quando garantido por lei, nem sempre é aplicado da mesma forma. “Sabemos, por exemplo, que realizar laqueaduras sem o consentimento ou conhecimento da paciente é uma prática comum de violência médica contra mulheres não brancas e pobres”, diz. A pesquisadora acrescenta, ainda, que casos de controle do corpo da mulher, quando não administrados pelo Estado, são mobilizados pela Igreja, acrescenta. Como a proibição de que meninas estupradas abortem mesmo quando a própria vida delas está em jogo, cita. “Há muito que caminhar e não há (mais) tempo a perder.”