Renata Dorea: conheça a trajetória da artista que reside em Juiz Fora
Artista que nasceu na Baixada Fluminense, vive em Juiz de Fora, onde desenvolve seu trabalho enquanto ilustradora, designer e cineasta
O café ficou intacto por tempos. Ia e voltava da boca. Na cabeça de Renata Dorea, passa muita coisa. A começar pela criança que sempre quis ser artista, mas não tinha referência de alguém ali, na família, que morava na Baixada Fluminense, que fosse artista. Aliás, tinha. Suas tias artesãs, que se juntavam de forma terapêutica e comunitária para tecer os fios e apresentá-los à família. Isso, no entanto, para elas, não tinha essa nomeação: arte e artista. Foi o artesanato o primeiro contato daquela ainda menina Renata com o que era a arte. Mas a verdade é que ela estava o tempo todo ali: nos versos que escrevia, nas tardes assistindo Sessão da Tarde com os primos, no interesse pela física, pelos mangás e pelo desenho. Tudo isso, na menina Renata, se mostra hoje, na Renaya Dorea: a mulher entre caminhos que vive o sonho de infância, a que bebe de sua própria arte e conta as histórias como se elas fossem filmes animados roteirizados, desenhados e dirigidos por ela mesma.
Transdisciplinaridade, essa palavra grande, é também uma das formas de apresentar Renata. (Renaya, aliás, é seu nome artístico, sem grandes explicações, um erro de digitação que acabou por a definir muito mais que aquele que a deram no dia do nascimento – o mesmo de seu pai e seus irmãos.) Ela saiu de Cabo Frio, onde morava com sua família, depois da baixada, para estudar em Juiz de Fora atraída exatamente pelo caráter transdisciplinar que a Faculdade de Artes e Design (IAD) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) apresentava. Antes disso, no ensino médio, no Instituto Federal Fluminense (IFF), essa vontade de viver das várias artes já apontava. Sua matéria favorita era física, o que foi fundamental, anos depois, quando foi estudar cinema.
A arte, para Renata, não é isolada
Até agora, Renata já realizou três filmes (mais um que ainda está no “forno”). O primeiro foi o documentário “Afrodite”, seguido pelo filme de arquivo “Suellen e a diáspora periférica” e o último, o mais experimental, “Patuá”. “Mas primeiro vem o desenho”, ela afirma. “É como se o desenho fosse o preparatório para o filme. Antes do filme, por exemplo, a gente faz um storyboard que nada mais é que desenhar a história. E tem um outro lado: a ilustração é uma narrativa também, né?!”, completa, enquanto tenta, mais uma vez, tomar um gole do café. “E a ilustração tem imperfeição, o que acaba dialogando com o artesanato. Ou seja, a arte é a linguagem. E meu trabalho como designer também, porque é utilitário, como o artesanato.” É por isso a transdisciplinaridade: as artes conversam em Renata e a partir dela. “Eu não aceito que a arte seja isolada.”
Sobre si mesmo, mas também sobre os outros
Nas ilustrações de Renata, ela se coloca. Encontrou uma poética que torna, de certa forma, seu trabalho único. É olhar e ver: é Renata. Ela conta que desenvolveu isso no IAD, a partir de uma professora que a impulsionava a, mais que pensar na técnica, colocar em foco a relação mais poética e sensorial, a atmosfera envolta no processo de criar. “E eu depois fui descobrir que isso tem nome: é autorreferencial, falar a partir de mim mesma.
Falar sobre o outro é mais fácil, mas acho mais sincero falar de mim mesma, plasmar a arte e até construir uma imagem, de pessoas como eu, que sempre foi ocultada. Criar algo que me tivesse ali. Porque a gente vê que a arte contemporânea hoje é composta por homens brancos mesmo. Eu, quando fui entrar no cinema, fui pesquisar e vi a porcentagem pequena de mulheres pretas cineastas. Mas com o tempo eu fui pesquisando e essas mulheres se tornaram minha referência, principalmente quando li ‘Quarto de despejo’, da Carolina Maria de Jesus. Eu fui entender que ela com nada, com o lixo, produzia. E eu, com muito mais privilégio, estava chorando, querendo desistir. Depois disso, parei de chorar e comecei mesmo a me tornar artista.”
Renata foi com sede ao pote, e desespero. Ela perdeu vários amigos e amigas que foram mortos e não tiveram a mesma oportunidade que a dela: simplesmente viver. Isso a fez ter pressa, vontade de viver. “Hoje, eu vejo que já consegui: estou chegando aos 30 e estou viva. Então, ser correria, fazer de tudo, é bonito, mas é cansativo também. A gente precisa de calma.” Essa calma, de certa forma, foi sendo conquistada na pandemia, quando ela pode voltar a si mesma. Foi nesse período que uma nova ideia surgiu: criar um história em quadrinhos, para o público infantil. “É uma segurança emocional”, conta, já que traz boas lembranças da época em que “comia” os mangás. Ela quer lançá-lo no ano que vem, e já tem nome: “Gostosura”.
Uma vida nova em Cuba
Desde os seus 19 anos, Renata tinha como objetivo entrar na Escuela Internacional de Cine y Televisión, em Cuba, considerada a melhor escola de cinema do mundo. Planejou sua ida até seus 22 anos. Passou na prova, e, em maio de 2021, com um financiamento coletivo, foi para Cuba, onde ficou por um ano, cursando Novas Mídias (ainda falta um tempo de formação, e ela pretende voltar ao país no ano que vem).
Por trás da EICTV ronda uma áurea mística. Tem a ver com sua idealização, do seu lugar de construção, e também da forte influência no realismo fantástico, fonte da qual bebiam seus fundadores: Gabriel García Márquez, Fernando Birri, Julio García Espinosa e Sergio Muniz. Tudo isso sempre atraiu Renata que, lá, viu que a escola se tratava mesmo do que comentavam: “É um treinamento de guerrilha. Tudo é coletivo. É um cinema poético e político. A gente tinha poucos equipamentos, mas dava para ver que não se precisa de muito para fazer filme. Todo mundo ajuda. Os professores são exigentes e só elogiam quando fica realmente bom”. Foi nesse processo que nasceu “Patuá”, seu último filme, que tem rodado o Brasil com os festivais de cinema. Um filme que fala sobre afetos, sobre religião, sobre ela em Cuba.
A Renata de hoje e amanhã
No próximo ano, o que não faltam são projetos a serem lançados por Renata. Além da história em quadrinhos e do filme, ela ainda quer lançar um livro de poesias. Recentemente, ela teve uma ilustração sua na edição da revista Marie Claire, em uma matéria sobre pobreza e falta de acesso aos cuidados da saúde mental de mulheres negras. Foi uma oportunidade de ver seu trabalho estampado em uma mídia que ela tanto consumiu quando criança, quando as imagens já ressaltavam aos seus olhos. Renata acredita ainda que muito disso existe pelo fato de morar em Juiz de Fora. “Eu sou quem sou por causa de Juiz de Fora, porque é uma cidade que é um caminho, esse fluxo, que recebe pessoas do Brasil todo.” A cidade é também esse entrelugar que Renata ocupa, sob influência de tantas coisas. Agora, podendo viver da arte, ela vive o futuro.