Adoção inter-racial. Por que é tão importante falar sobre amor?

Por Lucimar Brasil

11/09/2022 às 07h00 - Atualizada 11/09/2022 às 12h24

Adoção inter-racial. Por que é tão importante falar sobre amor? Pela primeira vez em mais de 30 anos de profissão juntando palavras, dando-lhes ritmo, impregnando-as de sentido, contando histórias dos outros a partir da vivência das minhas, não sei como começar um texto. Nem mesmo sei (costumava ser tão familiar) como terminá-lo ou ainda o que colocar no meio. O que é mais importante?  

Palavras de especialistas? O discurso apaixonado de uma mãe que adotou, ao lado do marido, quatro indivíduos e que se sente agradecida por não ter conseguido engravidar?  Ou a fala natural de adolescentes negros e de uma criança negra adotados por um casal branco? Ou será ainda a conversa com uma mulher à espera de um filho que pode chegar a qualquer hora sem que se saiba nada sobre sua origem, inclusive a cor de sua pele? Por onde você começaria um artigo para falar de adoção inter-racial? Usaria o exemplo da feroz atriz Giovanna Ewbank ao defender suas crias?  

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Por onde você começaria? 

Desde o início da jornada para escrever sobre esse tema, e lá se vão três meses, muitas coisas, até inesperadas, aconteceram, como a “coincidência” de ter em Juiz de Fora uma das maiores autoridades mundiais em adoção, o psicanalista, doutor em Psicologia Clínica, analista membro da Association Lacanienne Internationale, Nazir Hamad. Autor de mais de uma dezena de livros, em sua maioria voltados para a temática da adoção, ele, que se comunica em francês, esteve na cidade, nos dias 11 e 12 de agosto, como conferencista do Seminário “A relação de objeto e as estruturas freudianas”, organizado pela Associação Freudiana de Juiz de Fora.  

Como estava me recuperando de cirurgia para a retirada da vesícula, fui socorrida pela amiga e jornalista, Adélia Soares, cuja família branca adotou uma criança negra há cerca de 50 anos (eu não me lembrava disso), que se prontificou a entrevistá-lo em meu lugar. Sugeri apenas meia dúzia de perguntas, mas ela me entregou mais na gravação. Ao ouvir a conversa intermediada pelo tradutor Ronaldo Chicre, gentilmente cedido pela Associação Freudiana de Juiz de Fora, percebi que, para falar de adoção, sobretudo a inter-racial, em um país marcado por mais de 300 anos de escravidão do povo negro, é preciso uma rede de proteção interna e externa. 

Porque antes de intencionar abordar o assunto, é necessário estar disposto a querer ouvir, a não ter receio de se emocionar, a saber que a faca vai cortar delicadamente sua pele, seja ela de qual cor for, para ensinar algo sobre o amor. Por isso, em vez de oferecer a você minha percepção pelo tema, minhas incursões na longa conversa com a psicóloga Ana Paula Verly, que atende muitas crianças negras adotadas por famílias brancas em seu consultório, ou no papo emocionante com a dentista Izabela de Paula Gonçalves, casada com o piloto de avião Guilherme Mascarenhas Duarte de Assis, e os quatro incríveis filhos do casal, Lucas (19 anos), Marina (15), Eduarda (14) e João Pedro (8), proponho uma tarefa amorosa de você para com você.  

Converse com alguém consciente, desperto, de raça branca, que adotou uma criança ou adolescente de raça negra, ou, ainda, com alguma pessoa que esteja na fila da adoção e para quem a raça não faz a menor diferença no acolhimento a outro ser como filho. Pergunte-lhes sobre os desafios, as expectativas, os preconceitos que já presenciaram ou temem viver por estarem diante do inesperado, do que nunca viveram ou sentiram na pele.  

Ao contrário do que muitos podem pensar, o inaudito não é a chegada da criança ou do adolescente em si com suas próprias e diversas bagagens. A grande novidade é a abertura total que se faz ao amor incondicional. E sobre ele, querido ou querida que me lê, não há mesmo muito para escrever, afinal essa é a máxima experiência do sentir, para a qual temos ficado tão desacostumados, diante da perversidade que flutua por aí.  

Então, o máximo que lhe posso dizer? Experimente falar sobre o assunto, e você descobrirá muito a seu próprio respeito. 

ENTREVISTA NAZIR HAMAD 

“Quando os pais são fortes na posição deles, menos o discurso racista tem impacto sobre a criança” 

NAZIR HAMADCONSCIÊNCIA 

Na adoção, adotamos antes, inicialmente, uma criança. E adotar uma criança é reconhecê-la como sua. Isso não tem nada a ver com a raça. Tem a ver com o desejo pela criança. É uma possibilidade de criá-la em condições de respeito em relação a sua pessoa e história. Isso coloca um problema na adoção entre raças se houver um prejuízo negativo quanto a cor, a origem da criança. Se não há preconceitos, a questão da diferença de cor não se coloca como algo problemático. Tive a oportunidade várias vezes, quando recebia candidatos a adoção, de perguntar se eles tinham em sua conduta uma recusa a cor ou a origem. Se por uma razão ou outra diziam sim, nesse caso, não se dava a criança em adoção. Para mim, não é necessariamente uma atitude racista, porque os candidatos diziam: temos medo da criança sofrer racismo pelos outros. Nós não somos racistas, mas tememos por ela. Quando se adota uma criança, supondo com alguma particularidade, nós assumimos a particularidade da criança. Se não estamos em condição de assumir, isso vai fazer forçadamente uma relação muito frágil. Vou dizer uma coisa que tem o risco de te surpreender. Uma criança pequena adotada por um casal branco se desenvolve como uma criança branca.  Francoise Dolto dizia que há, em uma criança negra criada por uma família branca, uma imagem inconsciente do seu corpo branco. Tem uma história que aconteceu em meu consultório. A de uma mãe que adotou duas crianças negras. Um dia, ela conduzia sua filha para aula de hipismo. Como estavam atrasadas, ela fala para a filha mudar a calça dentro do carro. Quando a filha tirou a calça, a mãe lhe disse: mas você colocou suas meias pretas hoje. A filha olha para a mãe e diz: mamãe você tem a tendência de esquecer que eu sou negra, sou preta. É a prova que a família tem a tendência de tempos em tempos ter a criança com essa imagem. 

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DIGA ALGUMA COISA 

O que você diria a sua criança que tem uma particularidade, por exemplo, que é tratada de manca? Defenda-se, meu caro. Diga alguma coisa. Você manca, mas outro te tratar como manco é prova que ele é mal-educado. Você pode dizer a ele alguma coisa. É claro que essa criança em uma sociedade racista vai sofrer o racismo, mas a partir do momento que tem segurança da sua relação com sua família, com seus pais saberá se defender. Por outro lado, se os próprios pais são sensíveis aos ataques racistas podem fragilizar a criança. É por isso que tem que se estar certo, antes mesmo de recebê-la, de ter condições de assumir a diferença da criança, senão, não se deve fazê-lo. As crianças são muito malvadas entre elas. Podem se tratar de todos os nomes, e não é surpreendente que uma criança negra sofra racismo por parte de outras crianças quando há um conflito. É algo que prepara a criança. É preciso que ela esteja pronta para responder, para tratar dessas situações quando for o caso. Quanto mais os pais são fortes na posição deles, menos o discurso racista tem impacto sobre a criança. 

 PRECONCEITOS QUE ROUBAM 

Em todo caso, em cada adoção há um desafio, mas é ainda maior em uma sociedade racista, em que se corre o risco efetivamente de ouvir um discurso discriminatório. Tenho uma história terrível e empática ao mesmo tempo. Eu acompanhei uma menina cigana que foi adotada por uma família branca. A mãe estava com ela no metrô e a criança abraça a mãe por trás. As pessoas dizem: senhora, atenção, é uma ladra. E a mãe diz: não. É minha filha, e minha filha não pode ser ladra. São seus preconceitos que são ladrões. Eis um exemplo de como se pode enfrentar. Um casal branco com uma criança negra não é raro na França. A primeira pergunta que os outros fazem é: ah, vocês adotaram uma criança? É imediato, porque supõem que é uma criança adotada. Não é malvado como observação, mas aponta para a diferença da cor. Adotar uma criança negra traz o risco sempre de suscitar observações desta ordem. É por isso que, se não se está preparado, se não há firmeza na posição, a gente vai ser sempre confrontado com situações que nos ultrapassam. Vou dizer uma coisa talvez não muito simpática. O perigo para o discriminado é que ele se identifique com o discurso racista. Que ele se torne o próprio racista. É a prova que a escravidão não terminou. Que é uma sociedade de escravidão. Se o discurso racista persiste, se a discriminação é sempre real entre as raças, isso prova que a sociedade é sempre escravagista. 

 

Lucimar Brasil

Lucimar Brasil

Lucimar Brasil é jornalista (UFJF) com formação em Impacto Social (Instituto Amani e Gera Social) e em Liderança para Mulheres Pretas (Academia Firminas). Empreendedora, é responsável pela Gente de Conteúdo Comunicação e pelo próprio blog www.lucimarbrasil.com.br, onde publica artigos de diversas inspirações.

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