Espectadores do absurdo

Um homem morre asfixiado dentro de uma viatura. Depois dessa, vem a notícia seguinte. Diante do inaceitável, permanecemos imóveis. Como sair desse estado de apatia que nos congela dentro de nossos próprios problemas?


Por Renan Ribeiro

27/05/2022 às 07h00

Na recepção do salão de beleza, o âncora de um jornal elencava as principais notícias do Brasil e do mundo na TV, pouco antes da hora do almoço. Na cadeira recebendo o corte de cabelo, minha mãe opinou: “nossa, ele não deu uma notícia boa até agora”. A jovem cabeleireira concluiu: “não tem notícia boa mesmo”. Eu puxei pela memória para tentar lembrar de algo que pudesse chamar de bom, mas não havia mesmo.

Mas nem a quantidade assombrosa de prisões, mortes, desastres naturais, entre outras informações pesadas, conseguiu nos preparar para o que vinha a seguir: cenas perturbadoras de Genivaldo de Jesus dos Santos, que morreu asfixiado dentro de uma viatura, em Sergipe.

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Confesso que desviei os olhos da tela quando entendi o que estava acontecendo. A primeira reação que tive, antes mesmo da indignação, ou da necessidade de compreensão da situação como um todo, foi não acreditar que algo daquela natureza pudesse ocorrer e ser mostrado, daquela forma, naquele horário. Depois dessa matéria, vieram outras, e a vida seguiu.

Eu, no entanto, ainda fiquei detido no que as imagens provocaram em mim. Foi uma sensação similar à que experimentei quando a TV repetiu, por semanas, a imagem de George Floyd sendo assassinado em Minneapolis. Igualmente chocante como o relato dos familiares de Evaldo Rosa, músico executado com 80 tiros no Rio de Janeiro. Como o caso de Miguel Otávio, menino que morreu ao cair de um prédio de luxo, também em Recife.

Todas essas violências nos tornam um pouco mais frágeis, porque vão corroendo nossas crenças de que é possível testemunhar um mundo melhor. Todos esses casos poderiam ter sido evitados. Todas essas vidas e milhares de outras poderiam ter sido poupadas. Porém, cada uma dessas pessoas entra em um espaço de dor da nossa memória. Toda vez que seus nomes são lembrados, dói.

Quando percebi o desvio que meus olhos fizeram, voltei a encarar a imagem, porque essa indignação, esse incômodo, precisam acontecer para que a gente não deixe que outras situações semelhantes aconteçam e outras histórias sejam interrompidas em razão do que nós deixamos de fazer.

Além de respostas e responsabilidades apuradas e aplicadas, precisamos também repensar e reconfigurar o todo a partir delas. Até quando vamos naturalizar os absurdos que vão se acumulando nos espelhos e manchetes de nossos noticiários? O que é preciso para que a gente reaja à enxurrada de ações inaceitáveis que se repetem todos os dias? Eu não sei o que precisa acontecer para nos tirar desse estado de apatia, entorpecidos pela pilha de problemas que nos esmagam e nos deixam completamente imóveis. Eu espero que não seja necessário acontecer um absurdo ainda maior para nos levar à ação.

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