Para muito além da nossa carne negra
“A carne mais barata do mercado é a carne negra (na cara dura, só cego que não vê)” gritará para sempre Elza Soares aos ouvidos de uma sociedade que cambaleia em torno dos valores e sentidos sociais do corpo como signo, como representação.
“A nossa pele, essa pele preta, pele que o sistema diz que é barata, porque veio de graça e foi tomada, é uma pele com muito valor. Nós somos a pérola negra, o petróleo do planeta. Nós somos o que é de mais rico, o que é de mais potente e bonito”.
Ma Devi Murti
“A carne mais barata do mercado é a carne negra (na cara dura, só cego que não vê)” gritará para sempre Elza Soares aos ouvidos de uma sociedade que cambaleia em torno dos valores e sentidos sociais do corpo como signo, como representação. Historicamente objetificados, tratados como mercadoria, nós, negras e negros, experimentamos cotidiana e literalmente na pele a sensação de que nossa aparência é uma ameaça à nossa própria integridade. Um sofrimento gerado a partir do próprio corpo muito bem explorado, inclusive, no filme “Medida provisória” que marca a incursão de Lázaro Ramos como diretor de cinema. E que estreia.
Para entender essa relação ancestral, entrevistei a terapeuta Ayurveda, Ma Devi Murti, com a qual me consultei recentemente em São Paulo (SP). Pensar que todos trazemos memórias de dor da ancestralidade impregnadas em nossa constituição física é ampliar a consciência para nossa dimensão sagrada, e acordar para o que o racismo tenta nos surrupiar a todo instante: a certeza de que somos muito mais que carne (e a mais barata). Antes, porém, de falar em antepassados, é preciso compreender que experiências recentes vividas desde o útero materno tatuam, carimbam nossa constituição física.
“ O corpo é repleto de impressões emocionais que não foram trabalhadas, que não foram vistas. Ou mesmo impressões emocionais que ficaram ali de forma inconsciente. Muitas vezes, quando a pessoa tem consciência dessa impressão, ela finge que não por um mecanismo de defesa. Por um mecanismo de proteção, coloca aquilo no lugar mais profundo da memória, como se fosse para debaixo de um tapete, e vai viver a vida como se nada tivesse acontecido. Só que não é assim. O nosso corpo vai registrando e aquilo vai se acumulando com outras coisas. Então, somos um acúmulo de impressões emocionais. Desde a barriga da mãe, a gente vem recebendo informações e, em algum momento, a gente vai ter que lidar com elas”, alerta Ma Devi, ao se referir a experiências dolorosas que marcam todas as pessoas, independente da raça.
O mesmo se dá em relação à ancestralidade. Ao fazer recentemente seu mapa genético, a especialista descobriu que 58% de sua origem é africana. “Mais da metade de mim vem da África. Essa coisa de quem eu sou, de onde eu vim, porque eu sou Ferreira (seu nome na certidão é Cláudia Ferreira) traz uma angústia muito grande. É muita memória, história que não me foi contada, que me foi tirada à força, que está no meu corpo comigo, mas se encontra adormecida. Tudo que o sistema pede para a gente fazer é manter essa dor no esquecimento. Desde a comida que eles me dão, que chamam de cesta básica, até os remédios tudo me adormece. Tudo faz com que eu não acesse essa dor”, lamenta Ma Devi. Por isso, ela faz questão de acordar, com suas mãos, juntas às da nutricionista Sílvia Oliveira, sua parceira de trabalho, memórias que despertam consciências.
Para acordar corpos e mentes adormecidos
Durante a conversa com Ma Devi Murti, mencionei o nome de Elza Soares para falar, entre outras, de sua voz vibrante no filme de Lázaro Ramos. Para minha total surpresa, ela contou que, em uma edição da Virada Cultural, em São Paulo, seu rosto com diferentes expressões foi estampado nos telões, enquanto a diva universal entoava “Você vai ver o que vai acontecer se você bater em mim”.
“Elza é o verbo. Conseguiu se liberar das suas impressões emocionais na catarse do palco, na arte, no grito que ela deixou de dar nos momentos em que sofreu abuso, violência, racismo pelo único fato de ser preta. No palco, ela teve condições de abrir a boca, gritar. É o que peço para as pessoas fazerem durante a massagem. Aqui é um lugar de proteção. Você pode gritar, falar, gozar, sentir prazer, sentir a sua dor. Elza fazia arte e isso é uma forma inacreditavelmente maravilhosa de quebrar qualquer impressão negativa que se tenha”, alegra-se Ma Devi.
E continua. “Ela é uma das minhas inspirações para o que eu faço. Eu não a toquei, mas ela tinha a capacidade de fazer o que eu faço com as mãos. Quem me dera poder fazer isso com a palavra. A palavra que toca, que desmancha nós, a pontualidade, a oralidade. Aquela palavra que penetra profundo e vai lá dissolvendo as impressões dolorosas”, revela a terapeuta me derretendo, sem saber, com as palavras que ela acha que não tem.
Além de acolher a gente durante a sessão de massagem, Ma Devi e Sílvia fazem nosso corpo (e nossa mente) acordar. “E ele acorda através do toque extremamente prazeroso que causa a dor. Acaba sendo um toque doloroso, mas que liberta, porque vem através do prazer consentido. Eu pedi licença e você me deixou entrar nesse lugar escuro com a luz, o amor e o acolhimento. É uma massagem tântrica. A nossa pele, essa pele preta, pele que o sistema diz que é barata, porque veio de graça e foi tomada, é uma pele com muito valor. Nós somos a pérola negra, o petróleo do planeta. Nós somos o que é de mais rico, o que é de mais potente e bonito, porque eles querem o nosso balanço, o nosso sorriso, a nossa arte, a nossa luz. Mas eles querem para eles, eles não querem que a gente ocupe o nosso lugar”. Então, vamos ocupar.
COMPARTILHANDO
Assistir ‘Medida Provisória’ me faz refletir sobre a fina – talvez invisível, quiçá inexistente – parede que separa arte e realidade. Lembro que minha mãe dizia que no teatro a gente exagera nos gestos, nas cores para ser visto de longe. O filme pinta com tinta preta os pardos fatos que por vezes fingimos ignorar. Numa mesma semana em que Capitu (Taís Araújo) se esconde para não ser deportada pela cor de sua pele nas telonas, a notícia de uma mulher preta que é libertada de trabalho análogo à escravidão e tem vergonha de encostar na mão branca da repórter que a entrevista estampa o noticiário. De toda a narrativa densa, mas contada de forma mui didática, uma frase de André (Seu Jorge) me dilacera especialmente: ‘Pareceu preto, é preto!’. Pra mim – um homem preto de pele não-retinta – é impressionante constatar como até o direito à identidade nos é negado. E constatar que isso é um projeto higienista. É preciso estar atento, forte e sempre conectado com a ideia de que somos muitos mais e maiores.
Caetano Brasil
Músico
Assistir ao filme “Medida Provisória” trouxe várias reflexões. Forte e potente, ele mexeu muito com as minhas origens. Sou neta de negra, tenho “melanina acentuada”. Na “minha certidão de nascimento consta cor da pele ‘branca’. Essa definição sempre me incomodou. Quando jovem, pensava: “como fui registrada como branca”? Hoje entendo. Afinal, a cor da pele continua sendo uma “marca que nos coloca ou nos retira dos lugares”, e o meu pai inconscientemente sabia disso. O filme escancara essas contradições. Quem é branco? Quem é preto? O que significa ser brasileiro? O filme reacendeu no meu coração um orgulho da minha ancestralidade. Vi minha vó, minha mãe, meus antepassados em cada homem e mulher negra ali representados. Num momento em que tudo parece dizer não e a distopia teima em reinar nos pensamentos e corações, o filme nos provoca a continuar acreditando que é possível seguir na luta por um novo jeito de ser e viver em que todos, todas e todes convivam sem nenhum tipo de preconceito e injustiça. Sigamos!!!
Rachel Zacarias
Professora universitária