É tudo verdade


Por Júlia Pessôa

08/05/2022 às 07h00

Como ocorre toda vez em que a semana está para virar, sento-me diante desta tela luminosa com uma placa toda em branco, reluzindo seu vazio na minha cara. Quanto mais tardo a começar a preenchê-la, mais branca parece ficar, como se me provocasse ou esfregasse em meu nariz a nota promissória de que lhe devo palavras. De uns tempos para cá, meu processo de parir palavras tem mudado, se tornado mais material.

Começa com os dedos. É só posicioná-los sobre o teclado para esperar que as palavras comecem a sair que os sinto encurtar, encolher até que deixem de existir totalmente. Simplesmente somem, vão se desintegrando gradualmente e assim acontece com todo o corpo, parte por parte. Não demora muito para que eu suma por inteiro. PUF! Já era. Não importa o quanto eu tente me manter existindo, eu acabo. E só volto a ser quando me vem uma avalanche de palavras, um dilúvio, uma tsunami, uma explosão de léxico que vai tomando tudo feito força da natureza, ocupando, por fim, a página até então branca. Vou me refazendo enfileirando letras, e depois palavras.

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No Brasil de hoje (na verdade, de algum tempo), qualquer realidade absurda, metafórica e hiperbólica, se torna, como demonstrado acima, um trechinho de escrita medíocre. Não há possibilidade de competição com o despautério e a dor pungente e constante do cotidiano. Ou, como diria Belchior, “a alucinação é suportar o dia a dia”. Ou, ainda, como diria (tanto que disse) Garcia Márquez sobre a América Latina, “ (…) todos nós, criaturas daquela realidade desaforada, tivemos que pedir muito pouco à imaginação, porque para nós o maior desafio foi a insuficiência dos recursos convencionais para tornar nossa vida acreditável.”

Segue sem solução o massacre às claras do povo Yanomami, em Roraima. Depois que uma menina de 12 anos da aldeia morreu após ser estuprada por garimpeiros que exploram ilegalmente terras indígenas, todos os 24 integrantes da comunidade Aracaçá permanecem desaparecidos. Suas casas foram encontradas queimadas. E isso é apenas a ponta do iceberg, o que veio a público de um massacre, um aniquilamento e séries de violências muito mais avassaladores. Uma comunidade inteira literalmente sumiu do mapa, virou ruína da noite para o dia.

Não existe realismo fantástico ou distopia, todo absurdo nosso é documentário.

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