Culto ao corpo
O erro não está no culto ao corpo, e sim na sentença de morte a que o submetemos diariamente desde que nascemos, como se fosse o normal a se fazer. Mal rebentamos nesse mundão e já nos viram de cabeça pra baixo com um chamado pedagógico sobre como o corpo será (fatalmente) tratado ao longo da vida: aos tapas. O proverbial sinal de vida é parido da dor. Choro, logo existo. “Nasceu”.
Passamos anos tentando fazê-lo caber em lugares que nos ensinam como os únicos possíveis: roupas e rotinas apertadas; regras criadas por homens velhos e brancos séculos atrás; frases imbecis que se tornam mentiras convincentes. ‘Trabalhe enquanto eles dormem’. ‘No pain, no gain’. Vamos vivendo, com sono e dor, e tratando o corpo sempre como algo insuficiente, sempre falta ou sobra alguma coisa.
Enquanto isso, o corpo faz o que melhor sabe: persiste. A despeito de furos, rasgos e marcas a que o submetemos por vontade ou má sorte. A despeito de tudo que adentra e ou se ejeta de sua superfície e suas entranhas. A despeito dos pedaços que precisamos ou desejamos arrancar para que prossigamos fazendo dele habitação.
Criamos toda espécie de bobagem a respeito de sua existência para justificar escolhas só e somente nossas. “É um templo”, portanto intocável. “É um parque de diversões”, portanto afeito ao gasto. “Pró-vida”, mas só pelas vidas consideradas como tal, o resto que se estrepe num cínico “todas as vidas importam”.
Em sua inteligência peculiar, o corpo segue sendo barricada, num trabalho tão orquestrado quanto – quase sempre – silencioso. Os mais amados ( por nós e por outrem), quando se cansam, vão repousar como quem tira uma gostosa pestana depois do almoço.
Se me perguntarem, eu acho que a gente cultua o corpo é pouco.
Para Ju e Ednorah, sempre.