Linguagem neutra pode ser proibida em escolas de JF; entidades repudiam proposta
Texto em tramitação na Câmara deve reaparecer na pauta de votação desta quinta-feira e prevê possibilidade de multa para professores
Um conjunto de 19 entidades de Juiz de Fora, a maioria delas ligadas à área de Educação, movimentos sociais e à defesa de minorias, publicou nota de repúdio contra projeto de lei que tramita na Câmara Municipal e prevê a proibição do uso da linguagem neutra nas escolas. O documento foi compartilhado, inclusive, pelo perfil da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) nas redes sociais. A ferro e fogo, conforme as discussões públicas em andamento na Câmara Municipal, a proposição questionada, que é de autoria do vereador Sargento Mello Casal (PTB), quer vedar discussões relacionadas à linguagem neutra, do ponto de vista do gênero, nas instituições de ensino da cidade. O texto, inclusive, prevê a possibilidade de incidência de multa a educadores.
A nota de repúdio rechaça a proposição por entender que o texto “estabelece que o ensino de Língua Portuguesa deve reduzir-se ao ‘Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa e da gramática elaborada de acordo com reforma ortográfica a ratificada pela Comunidade de Países de Língua Portuguesa’. Segundo as entidades, “nas falas públicas ocorridas nas sessões da Câmara, as defesas pelo projeto de lei justificam-se com base em uma crítica sem fundamentos à linguagem inclusiva, mobilizada como modo de gerar conscientização acerca da diversidade de gênero e sem qualquer dano à educação”, apontam, em alusão à conhecida como “linguagem neutra”.
Assim, o entendimento manifestado pela nota de repúdio é de que a proposição contradiz o estabelecido pela Constituição Federal de 1988, que, segundo as entidades, “orienta a formação para a cidadania e o pluralismo de ideias”. Para as entidades, a proposição de proibir a linguagem neutra também contraria a Base Nacional Comum Curricular, “que orienta o ensino da língua não somente como uma lista de orientações ortográficas, e sim como um fenômeno cultural e histórico multifacetado, sujeito a variações e mudanças que levam tempo para serem incorporadas em registros oficiais”.
“No que se refere à Política Linguística, é o uso da linguagem que define acordos e normas, e não o movimento oposto”, diz a nota. As entidades ainda condenam a possibilidade prevista pelo projeto de lei de aplicação de multa de cem UFMs (unidade fiscal municipal) aos educadores, o equivalente a R$ 13.898, uma vez que uma UFM em 2022 vale R$ 138,98. Segundo o texto, o valor pode dobrar em casos de reincidência. Ficam sujeitos a sanções pecuniárias pessoas físicas e jurídicas. “Trata-se de um ataque à Educação de qualidade e ao exercício da docência que se propõe garantir as orientações legais vigentes no país, incluindo a Base Nacional Comum Curricular”.
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Pauta de votação
De viés polêmico, a proposição foi apresentada na Câmara pelo vereador Sargento Mello Casal em julho do ano passado. Desde o último dia 13 de abril, o texto vem aparecendo na pauta de votação do Legislativo municipal, tendo sua apreciação em primeiro turno adiada por movimentação das vereadoras Cida Oliveira (PT), Tallia Sobral (PSOL) e Laiz Perrut (PT).
Na última segunda-feira, Laiz pediu o sobrestamento do texto, que estará apto para reaparecer na pauta de votação na sessão desta quinta-feira. Como já há solicitação para a realização de reuniões extraordinárias no último dia de sessões legislativas de abril, há brechas para que a proposição seja aprovada em três discussões. Contudo, caso a discussão passe pelo plenário em primeiro turno, há espaço para novos pedidos de vista e de sobrestamento em segundo turno, o que pode postergar a discussão definitiva do mérito da proposição.
O projeto da linguagem neutra
O projeto de lei de Mello quer vedar discussões em torno da chamada linguagem neutra nas escolas municipais, sob o argumento de garantir aos estudantes “o direito ao aprendizado da língua portuguesa de acordo com as normas legais de ensino. Assim, o dispositivo considera como violação ao direito do estudante a utilização de códigos e linguagens não previstos nas normas legais de ensino estabelecidas “com base nas orientações nacionais de Educação, pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa e da gramática elaborada de acordo com a reforma ortográfica ratificada pela Comunidade de Países de Língua Portuguesa”.
Segundo o texto da proposição, a determinação valerá para “todo o sistema de ensino do município de Juiz de Fora” e também para “o Ensino Superior” e os editais de concurso público para acesso a cargos, empregos e funções públicas do Município. “Os códigos e as linguagens da Língua portuguesa dos materiais didáticos adotados pelo sistema de ensino municipal não poderão estar em desconformidade com as normas legais de ensino estabelecidas com base nas orientações nacionais de Educação, pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa e da gramática elaborada de acordo com a reforma ortográfica ratificada pela Comunidade de Países de Língua Portuguesa”.
“Pluralismo de ideias”
Na nota de repúdio, as entidades citam a Constituição Federal de 1988, que estabelece que a educação no Brasil é “direito de todos e dever do Estado e da família” e “será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Também são citadas outras definições constitucionais, com os princípios de “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”; “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”: e o “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino”.
Outro dispositivo, a Base Nacional Comum Curricular, também é citado na nota emitida pelas entidades, em especial em trechos em que define as competências acerca do ensino de Língua Portuguesa. São citados trechos do documento que estabelece que como o entendimento da língua como fenômeno cultural, histórico, social, variável, heterogêneo e sensível aos contextos de uso, reconhecendo-a como meio de construção de identidades de seus usuários e da comunidade a que pertencem; e como fenômeno da variação linguística, demonstrando atitude respeitosa diante de variedades linguísticas e rejeitando preconceitos linguísticos; entre outros.
Subscritores
Assinam o documento o Centro de Referência de Promoção da Cidadania LGBTQI+ da UFJF (CeR-LGBTQI+); o Instituto de Educação e Cidadania – Centro de Referência de Direitos Humanos de Juiz de Fora e Território Mata (IEC/CRDH); o Coletivo Mães Pela Liberdade de Minas Gerais; o Coletivo Força Trans de Juiz de Fora; a Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneres de Juiz de Fora (ASTRA-JF); a Comissão da Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil em Minas Gerais (OAB-MG); o Grupo de Estudos e Pesquisas em Sexualidade, Políticas, Gênero, Diversidade e Saúde (GEDIS/UFJF/CNPq); Observatório da Diversidade Sexual e de Gênero: Políticas, Diretos e Saúde LGBT da Faculdade de Serviço Social da UFJF (Diverse); o Laboratório de Pesquisa Assessoria Jurídica em e Violências Institucionais e Direitos Humanos da Faculdade de Direito da UFJF (Lavid/UFJF); o Coletivo Marielle Franco – Mulheres UFJF; o Corpo Docente do Curso de Especialização em Relações de Gênero e Sexualidades: Perspectivas Interdisciplinares da Faced/UFJF; o Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade, Educação e Diversidade (Gesed) da Faced/UFJF; o Grupo de Pesquisa em Psicologia Social, Políticas Públicas e Saúde (PPS) do Departamento de Psicologia da UFJF; o Grupo de Pesquisa em Religião, Educação e Gênero do Departamento de Ciências da Religião (Reduge) da UFJF ; o Grupo de Pesquisa Gênero e Interdisciplinaridade (Geni) da UFJF; o Grupo de Pesquisa Linguística Aplicada, Educação e Direitos Humanos (LAEDH/UFJF); o Grupo de Estudos e Pesquisas em Avaliação, Currículo e Ensino de História (UFJF); o Grupo de Pesquisa, Extensão Ensino de e Sociologia da UFJF (Grupees); o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Ambiental (GEA) da UFJF; o Travessia Grupo de Pesquisa da UFJF.