Garotas de programa sofrem onda de violência em Juiz de Fora
Entre os crimes cometidos num período de 20 dias na cidade contra profissionais do sexo estão estupro, roubo e homicídio
Uma sequência de crimes violentos contra garotas de programa chamou a atenção no último mês em Juiz de Fora. Pelo menos quatro mulheres foram vítimas de ocorrências distintas em um intervalo de menos de 20 dias, acendendo o alerta sobre a vulnerabilidade daquelas que trabalham com sexo. A maioria dos casos, como estupro, roubo e até homicídio, aconteceu em regiões centrais da cidade, e nenhum suspeito foi preso em flagrante. A Polícia Civil instaurou inquérito para apurar cada um desses delitos. Segundo a assessoria da instituição, dois deles estão sendo investigados pela Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, um pela Delegacia de Roubos e outro pela Homicídios. “Todos estão sendo apurados, em fase avançada de investigação”, garantiu a polícia, sem fornecer detalhes e sem revelar se há alguma ligação entre os crimes.
O primeiro registro da série de violência contra garotas de programa levantada pela Tribuna aconteceu entre a noite de 17 de março e a madrugada do dia seguinte. Uma mulher de 28 anos denunciou à Polícia Militar ter sido vítima de estupro nas imediações do Bairro Granjas Bethel, Zona Sudeste, após ser contatada para a realização de um programa. Ela relatou aos militares que estava na esquina da Rua Marechal Deodoro com a Avenida Francisco Bernardino, no Centro, quando foi abordada por um possível cliente.
Ele teria oferecido R$ 300 por duas horas de encontro em um motel às margens da antiga Estrada União e Indústria. No trajeto até o local, entretanto, a mulher foi ameaçada com arma de fogo e forçada a ter relações sexuais sem seu consentimento e sem uso de preservativo, sendo depois abandonada na rodovia. A vítima foi socorrida ao HPS e atendida conforme o Protocolo de Atendimento ao Risco Ocupacional e Sexual (Parbos).
Outro caso bem semelhante aconteceu um dia depois, em 19 de março, quando uma jovem, 21, relatou ter sido estuprada e roubada na Rua São João, no Centro. Ela contou à PM que havia sido contratada para um programa por meio de anúncio em um site de classificados eróticos. Após conversar com o interessado pelo WhatsApp, os dois combinaram um programa por R$ 100 em um endereço da vítima. Quando ele chegou ao local, foi informado sobre a necessidade do pagamento adiantado. Depois de questionar se poderia fazê-lo por meio de PIX, o homem sacou uma arma de fogo de dentro de uma bolsa, segurou a vítima pelo pescoço e a jogou na cama.
Com a arma apontada para sua cabeça, a mulher foi obrigada a manter relações sexuais com o criminoso, que ainda a agrediu com tapas no rosto durante o ato. As ameaças continuaram depois, enquanto o bandido roubava um aparelho celular, R$ 250, uma caixa de som portátil e outros pertences da vítima, incluindo cinco perfumes. Antes da fuga, o ladrão ainda amarrou a garota, que foi deixada com as pernas e braços atados, causando, inclusive, hematomas nos pulsos. Ao conseguir se libertar das amarras, a vítima pediu ajuda a pedestres, até encontrar uma viatura e também ser levada ao HPS e ser atendida de acordo com o Parbos.
Vítima é encontrada morta debaixo de viaduto
Outro caso em apuração é o de uma mulher em situação de rua, 40 anos, achada morta embaixo do Viaduto Augusto Franco, no dia 20 de março, no Bairro Poço Rico, Zona Sudeste de Juiz de Fora. A Perícia da Polícia Civil realizou os levantamentos no local e encontrou a vítima seminua, com ferimentos na face e na cabeça, provavelmente ocasionados por algum objeto contuso. A PM obteve informações que a mulher seria garota de programa e não era vista há cerca de dois dias. Ela estaria sendo ameaçada de morte por traficantes por dívidas de drogas.
Na semana passada, o delegado Rodrigo Rolli, titular da Delegacia Especializada de Homicídios e responsável pelo inquérito, confirmou que a vítima seria usuária de substâncias entorpecentes e teria muitos desafetos. A Polícia Civil segue com as apurações e já possui uma linha de investigação definida, mas detalhes não foram revelados.
Já no dia 1º de abril, por volta das 22h, outra mulher, 36, foi encontrada pela PM nua, amordaçada e com os braços amarrados para trás em um apartamento na Rua Santa Rita, no Centro. A vítima relatou à PM que havia agendado um programa com um homem para as 20h30, no valor de R$ 100. O cliente compareceu e pagou adiantado. No entanto, ainda durante o encontro no apartamento, o homem vestiu suas roupas, sacou uma arma de fogo e anunciou o assalto.
Desconfiada de que se tratava de um simulacro de arma, a vítima reagiu, mas acabou sendo agredida e imobilizada. O assaltante fugiu, levando dela a quantia de R$ 500 e dois aparelhos celulares, além das chaves da casa. A PM foi acionada por um morador, 44, que havia avistado de sua residência a mulher pedindo ajuda. Militares realizaram rastreamento na região, mas nenhum suspeito foi encontrado.
A Tribuna solicitou à Polícia Civil mais detalhes dos casos e questionou se essa frequência de crimes violentos envolvendo garotas de programa é mesmo atípica e se tem chamado a atenção da polícia, assim como quais providências estão sendo tomadas, mas a assessoria da instituição informou que entrevistas acerca do tema só serão possíveis após a conclusão das investigações.
Violência contra garotas de programa é pouco discutida
O advogado, mestrando em Serviço Social e secretário da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/MG, Júlio Mota de Oliveira lembra que a violência de gênero é reconhecida globalmente e vem sendo discutida como questão de saúde pública e de direitos humanos, que causa altas taxas de mortalidade e morbidade de mulheres em todo o mundo. “No entanto, embora as violências contra mulheres profissionais do sexo estejam vinculadas às violências contra as mulheres, raramente as violações de direitos e os abusos vivenciados por prostitutas estão incluídos nessas discussões.”
Ele ressalta que os estigmas e estereótipos construídos historicamente e que são atribuídos às garotas de programa perpetuam diversas expressões de violência vivenciadas por essas mulheres em seu cotidiano, desde agressões físicas, psicológicas, morais, sexuais e patrimoniais até assassinatos. “Não há dúvidas de que a possibilidade moral do exercício do trabalho sexual é um assunto polêmico, que não possui consenso nas mais diversas esferas sociais. Apesar disso, o abandono político, social e até legal em relação às profissionais do sexo não é uma solução para a garantia de seus direitos mais básicos, conforme comprova a onda de violências – dentre elas agressões sexuais e até um assassinato – registrada em Juiz de Fora num curto período de tempo.”
Oportunidade para exercício da cidadania
Para mudar esse cenário, o secretário da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/MG aponta, inicialmente, a capacitação adequada de agentes de segurança pública, de profissionais da saúde e dos demais agentes estatais para que sejam dadas às trabalhadoras sexuais oportunidades para o exercício da cidadania e para contribuir para que parte dos estigmas que recaem sobre essas mulheres sejam superados. “No entanto, considerando que a violência é uma questão complexa que não é solucionada com ações isoladas, é necessária a elaboração de uma política pública que seja capaz de proporcionar a estas mulheres a garantia dos direitos fundamentais e sociais que lhes são negados em decorrência da profissão que exercem, principalmente daquelas que trabalham nas ruas.”
Júlio Mota acrescenta a necessidade de que seja feito “um mapeamento dos dados de violências contra as profissionais do sexo, bem como um estudo que leve em conta informações como a maneira que as violências se manifestam, quais grupos sociais elas afetam e quais ações específicas devem ser desenvolvidas para solucionar a questão, além de um debate acerca do tema que conte, inclusive, com a participação efetiva das próprias profissionais do sexo para a elaboração de uma política pública eficaz”.