Em nome da liberdade

Por Bruno Stigert

10/04/2022 às 07h00 - Atualizada 10/04/2022 às 13h48

O fetiche pela retórica da liberdade não é recente e menos ainda inédito. Em seu nome e em sua suposta defesa, povos, etnias e grupos minoritários sofreram com o que se convencionou chamar de banalização do mal.

Um dos textos mais conhecidos e festejados sobre liberdade é de Isaiah Berlin, com o título “dois conceitos de liberdade”. Nele, o autor busca identificar ao longo da história do pensamento político o que ele classificou de liberdades positivas e negativas.

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Antes de verticalizar o tema, um alerta: o tema liberdade é vítima de pensamentos e afirmações descuidadas, por vezes dolosamente manipulados e constantemente utilizados para restringir a própria liberdade.

Na esteira de Berlin, “liberdade negativa” significa ausência de formas de restrições, impedimentos ou interferências. Nessa perspectiva, é livre o indivíduo que tem a sua disposição oportunidades para agir. Trata-se de um espaço desobstruído, fluído, no qual o indivíduo age sem interferência.

Já a “liberdade positiva” consiste numa espécie de autogoverno, materializado no indivíduo que recusa o rótulo de um ser passivo, reivindicando o direito de escolher seus fins e de demandar os meios que proporcionam esses fins. Em resumo, um certo grau de independência e autonomia. Nessa abordagem, por exemplo, pessoas escravizadas e influenciadas por vícios ou impulsos emocionais irresistíveis carecem de liberdade (em sentido positivo). Aqui, eles deixam de ser “mestres de si” e passam a agir por força alheia a eles.

Penso que as questões centrais sobre liberdade residem em duas preocupações: (1) como as autoridades podem usar seu poder para limitar nossas opções e reduzir nossas liberdades negativas à níveis aceitáveis – a lei é um exemplo; ou (2) como as autoridades impedem nossos próprios julgamentos sobre como devemos agir, nos impondo um controle alheio, por vezes instrumentalizado em medo e coação. Normalmente, essa estratégia exposta na segunda preocupação, se dá mediante a criação de inimigos imaginários e políticas ostensivas de padronização do pensamento coletivo. Hitler escolheu os Judeus. A ditadura no Brasil escolheu o comunismo. Rússia elegeu como alvo a Ucrânia. Estados Unidos, Bin Laden, etc. O curioso e comum em todos os hipotéticos inimigos é a ausência de materialidade dessas entidades. No Brasil um partido de esquerda ganhou quatro eleições, não implementou o regime comunista, mas sempre tenta fazê-lo no discurso repetitivo de figuras políticas pouca afetas ao republicanismo e à democracia. Bin Laden foi jogado ao Mar, etc.

Portanto, quando alguém invoca a liberdade como argumento, seja na política ou no mundo da vida, é seu dever argumentativo mínimo dizer se ele fala de liberdades positivas ou negativas. Se o debate for sobre liberdades negativas, na linha da primeira preocupação, estamos tratando de uma relação cuja posição do Estado é de garantir liberdades e oportunidades básicas, como expressar ideias e argumentos, participar de atividades religiosas, formar associações para fins políticos, escolher convicções políticas e filosóficas, votar e ser votado, etc. Aqui, o Estado interfere muito pouco e sempre amparado na lei e na Constituição, não apenas na opinião de um governante ou partido.

Como diz Berlin, a “liberdade não é a única meta dos homens”. Nas sociedades plurais, existem demandas diversas que dizem respeito a valores fundamentais para o desenvolvimento do ser humano e não há uma regra universal aceita que estabeleça uma hierarquia entre eles. No entanto, se a liberdade depende da miséria de outros seres humanos, o sistema que promove tal coisa é injusto e imoral. A restrição das liberdades só é legítima para atenuar as graves desigualdades e se ao restringi-las aumentarem as desigualdades individuais, teremos uma perda definitiva da liberdade. A liberdade negativa, traduzida no não agir do Estado, é pouco para sociedades profundamente marcadas pelas desigualdades. Noutro giro, as liberdades positivas, sem a carnavalização do termo, são indispensáveis para a construção de sociedades efetivamente livres, sem vícios e impulsos emocionais que fazem apelos à símbolos e entes imateriais.

Governos que usam a palavra “liberdade” para emocionarem adeptos, sem promover uma liberdade real, incitando um ambiente de radicalismos, são adversários da democracia, ao menos é o que a história da humanidade nos conta. A liberdade também não está em armas, salvo se as armas forem educação, moradia, alimentação e saúde. Quando tudo é liberdade, nada é liberdade! Lembrem-se: governos autoritários surgem em tempos de democracia e livre circulação de ideias e argumentos. Entretanto, em tempos de banalização do termo liberdade e durante governos pouco democráticos, o reestabelecimento das liberdades públicas custa vidas, sangue e tempo!

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Bruno Stigert

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