O choro é (ainda) livre 


Por Júlia Pessôa

13/03/2022 às 07h00

Existe aquela máxima de que quando temos nada de bom a dizer, o melhor a fazer é ficar em silêncio. O problema é que fazer isso no Brasil, especialmente de 2018 para cá, tornou-se impossível. Só com uma boa dose de cara de pau, maldade ou plena alienação é possível encontrar uma rapinha de tacho de bonança para se falar sobre o país. Eu mesma agora sou portadora de perspectivas nada favoráveis para a população – lamento.
Um setor que vem sendo visivelmente sucateado nos últimos anos é o humor, a não ser pelo nicho “rir para não chorar”, que triplicou a meta de crescimento no último quadriênio no Brasil – mesmo assim para classes privilegiadas da sociedade. Para quem está na linha de frente das mazelas sociais, resta o choro, que é livre – pelo menos enquanto ele não é taxado.
Não tem mais graça esse país. As pessoas estão novamente passando fome, quem come ingere mais agrotóxicos do que nunca, a arte e a cultura vêm sendo exterminadas, a mamata jamais foi tão mamada, justamente por quem dizia que ela acabou. De fato, como acontece com a Amazônia, vêm desmatando o (so) riso.
Sabe-se que um dos gatilhos para o efeito humorístico é o absurdo. Como, por exemplo, o gracejo de dizer, quando se está com um enorme cansaço: “alguém anotou a placa?”, referindo-se à proverbial carreta que passa por cima de nós, esgotando-nos fisicamente. Mas quando os impropérios tornam-se literais, isso acaba. Sabe-se que uma das causas do desemprego em massa é a automação de processos, que passam a preterir a força de trabalho humana. Com o humor pautado pelo absurdo não é diferente.
Outrora, se um político dissesse que uma mulher “é fácil porque é pobre” estando no improvável cenário de uma guerra, isso facilmente seria matéria-prima para piada, pela intangibilidade. Piada de mau gosto e misógina, é verdade, mas ainda assim algo frequente e socialmente aceito alguns anos atrás. O mesmo aconteceria com um pronunciamento presidencial afirmando que mulheres “estão praticamente integradas à sociedade”, em tom elogioso. “Ah, mas você tirou a frase de contexto!”. Ok. O contexto é o Dia Internacional da Mulher, um evento em que só homens falaram.
É quase inacreditável que qualquer chance de humor destas cenas tenha sido extinta. Não por seu caráter machista e misógino – o que seria ótimo -, mas porque representam pensamentos e ideias defendidas a sério.

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