Vitamina C
Chico levanta cedo. Antes de acordar a filha para a aula, vai à cozinha, põe três dedos de água no copo e lança um comprimido de vitamina C. A rodelinha alaranjada começa a efervescer e Chico saca o celular. Ainda não são 6 horas e já há uma dezena de mensagens no WhatsApp. Algumas dizem respeito a trabalho. Outras são do grupo do futebol. Do grupo da família. Do grupo da faculdade que Chico terminou há 15 anos. “A luta é grande, mas a derrota é certa” é uma de suas figurinhas prediletas. Ele ri. A rodelinha laranja ebule no fundo do copo.
Enquanto a vitamina não se desfaz, Chico olha sua agenda. Depois que deixar Marina na escola, precisa ligar para a mãe e ver se o vazamento na pia da cozinha foi resolvido pelo encanador que ele enviou ontem. E aí academia. É bom lembrar de levar uma camisa mais fresca pendurada no putamerda. O celular indica um pico de 30 graus às três da tarde. Aproveitando a checagem da previsão do tempo, Chico abre outro aplicativo e confere como fechou a bolsa da Shanghai Stock Exchange. No copo sobre o balcão da cozinha, a vitamina C ainda ferve.
Observando as bolhas subirem, lembra-se de mandar uma mensagem para um colega de trabalho. É preciso deixar um relatório pronto até as 11h para que Chico tenha tempo de se inteirar da situação para um almoço de negócios às 13h. Ele marcou no Tiano’s? Ou seria no Satriale? Mensagem para Luciana, para que ela esclareça. Chico abre então o email, já que está com o celular na mão mesmo. A entrega do presente para o aniversário de Andreia vai atrasar. A empresa garantiu que chegaria antes de sexta-feira, mas pede mil desculpas, pois houve um problema com os fornecedores em Nairóbi. Ele vai ter que dar um jeito. O comprimido ainda não se desfez e escalda na água que se alaranja.
Súbito, Chico se lembra de que não poderá buscar Marina na escola por conta do almoço de negócios, e Andreia está em São Paulo. Luciana vai ter que quebrar essa. Lembrar de mandar uma caixa de bombons pra Luciana. A revisão do carro! Ele tinha que deixar o carro hoje. Não vai dar. Ligar para a concessionária e pedir que encaixem amanhã. Ou quinta. Não pode passar dessa semana. E a gerente do banco? Ligação não resolve mais, Chico precisa passar na agência. Quem sabe perto da hora do fechamento? E de lá já voltar pra casa e fazer o relatório da reunião para apresentar por videochamada mesmo. Até umas oito dá pra terminar. A rodelinha, delgada e disforme, sobe à superfície do copo. Chico cutuca com a ponta do dedo mas ela não se desfaz por completo ainda. E ele se pergunta se na sua infância um Cebion demorava tanto assim pra dissolver.