Idílio urbano
É um predinho de dois andares, com dois apartamentos por andar e sem elevador. Cada apartamento tem dois quartos, uma sacada pequena na sala e direito a uma garagem no térreo. A cozinha é ótima, especialmente se alguém souber cozinhar. Dividindo a garagem em duas entradas distintas, com porta aberta para a rua, há uma padaria. A gente não precisa olhar no relógio o tempo todo para saber as horas. Quando chega ali ao primeiro andar o cheiro do pãozinho de sal pronto, são 6 horas. Depois, 8. O cheiro de bolo vem às 10 e o de pão doce ao meio-dia. Quando dá 3 da tarde, de novo o pãozinho de sal. A maioria do pessoal que desce o morro sentido centro passa perto das 7 e não sabe dessas coisas, só vê a padaria embaixo do predinho e os clientes saindo com seus sacos pardos.
Do outro lado da rua, à direita, há portas do tipo comercial encravadas num edifício residencial de dois andares. Mas em uma delas, embora aberta, não há comércio, não há nada. Somente o piso de cerâmica vermelha antiga e as paredes caiadas. Em uma dessas paredes, a pintura de uma espécie de portal e, dentro dele, um feixe de luz. Há palavras escritas no feixe de luz, mas quem passa na rua só consegue ler o que vai no alto do desenho, em letras maiores: “Universo em desencanto”. Entre a sala nua e a calçada, no umbral da porta, sentado em uma cadeira de plástico branca, há um homem. Ele é velho e tem os olhos azuis tomados de carne crescida. Fica o dia todo ali, como que vigiando o andar do sol. Quando escurece, ele fecha a porta e não é mais visto até o dia seguinte.
O tráfego de carros é pequeno, há um ponto de ônibus logo depois da padaria, sentido bairro, onde sobem e descem poucas pessoas. O asfalto é razoável e o silêncio evidencia o canto de pássaros engaiolados. O latir dos cães nos quintais ordinários. Pneus velhos e telhas de amianto. Espadas-de-são-jorge e beijinhos brancos, rosas, laranjas, vermelhos. Lodo, limo, lama. Nos horários de entrada e saída de aula cresce a sinfonia urbana, o farfalhar alegre do esplendor juvenil, que logo abranda no raiar do dia, no calor da tarde ou no esvaecer do arrebol. Ali as pessoas não parecem temer as criaturas da noite: é possível ouvir uma ou outra alma viva assoviando na madrugada, de passagem, quando estão fechados os olhos, a padaria e o comércio do velho que nada comercializa. Até que a gente enfim adormece, nesse idílico Bairro Santa Cecília do moribundo século XX, só para acordar e testemunhar tudo outra vez.