O Brasil de nosso tempo retratado em ‘Confinada’

Sucesso no Instagram, série em quadrinhos de Leandro Assis e Triscila Oliveira ganha versão impressa pela Todavia


Por Júlio Black

08/12/2021 às 07h00

HQ reúne 70 capítulos da série publicada na internet entre 2020 e 2021 (Foto: Reprodução)

Os quadrinhos nacionais tornaram-se, nos últimos anos, o meio pelo qual vários artistas passaram a retratar as desigualdades sociais e o racismo de nosso país, muitas vezes parte de uma realidade tão próxima a eles. É possível citar, por exemplo, “Olimpo Tropical” (André Diniz e Laudo Ferreira), “Eu sou Lume” (PJ Kaiowá) e “Castanha do Pará”, de Gidalti Jr. Porém, quando pensamos no Brasil que acompanhamos nos noticiários e pela internet há quase dois anos, não há obra mais contundente e que retrate tão perfeitamente nosso cotidiano quanto “Confinada” (Todavia), de Leandro Assis e Triscila Oliveira.

Lançada no início de novembro, a HQ reúne as tirinhas publicadas em 70 capítulos entre setembro de 2020 e setembro deste ano no Instagram (@leandro_assis_ilustra), adaptadas para o papel numa edição de 128 páginas – e que teve campanha de crowdfunding de enorme sucesso no Catarse, com pré-venda de quase oito mil exemplares. Graças ao sucesso da iniciativa, a Todavia vai doar centenas de cópias para bibliotecas em todo o país.

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A série é spin-off de “Os Santos”, em que Leandro mostrava o dia a dia de uma família da elite brasileira com todos os seus preconceitos, alienação, hipocrisia e privilégios – e que foi progressivamente perdendo o pudor de mostrar a parte mais podre de sua essência a partir das eleições de 2018. Um dos pontos mais comentados na tirinha era justamente o tratamento dado a empregadas domésticas e faxineiras, com várias pessoas relembrando histórias da casa grande e senzala modernas. Uma delas foi a escritora e ativista Triscila Oliveira: vinda de uma família em que várias mulheres trabalharam como domésticas e diaristas – inclusive ela -, Triscila se tornou parceira e coautora do roteirista e ilustrador, e aproveitaram o contexto da pandemia para criar “Confinada”.

A ideia de usar a pandemia para escancarar as desigualdades sociais e econômicas, o racismo e a insensibilidade e mesquinharia de nossa elite criou um retrato fiel do abismo social existente no Brasil, e que essa elite se esforça tanto em aumentar – seja pela herança racista e escravocrata, seja pelo puro egoísmo de querer tudo para si e os poucos ao redor.

Um exemplo dessa elite é a influencer digital Fran Clemente. Moradora de uma cobertura de alto luxo na Zona Sul carioca, ela convence uma de suas três empregadas, Ju, a fazer a quarentena com ela, enquanto as outras duas vão para casa com apenas metade do salário. No Instagram, Fran exibe o corpo magro e sarado pregando que a pandemia é uma oportunidade para ver o “lado positivo” das coisas (até do coronavírus), “olhar para dentro”, “fazer um balanço”, buscar novos desafios, crescer, ser “good vibes”, que todos sairiam da pandemia mais humanos e solidários.

Pois a “solidariedade” de Fran era fazer Ju, a doméstica, seguir dormindo no quarto de empregada em um apartamento de mil metros quadrados e fazer o serviço de três funcionárias – inclusive lavar as calcinhas da patroa. Enquanto Fran fecha contratos de patrocínio, reúne amigos para uma festa e mantém o discurso de que a pandemia é uma “oportunidade” e a empregada é “ingrata” por não querer gravar um vídeo com a patroa, é pelo celular de Ju que temos contato com a realidade da grande maioria dos brasileiros.

Por meio de ligações e mensagens trocadas com a mãe e amigas, acompanhamos o drama de quem precisou continuar trabalhando presencialmente, sem a oportunidade do home office, pegando ônibus lotados, sem plano de saúde, levando a Covid para casas de 30 metros quadrados e habitadas por várias pessoas. Aos poucos, a doméstica se revolta contra a exploração a que é submetida, aumentando a tensão e o conflito no apartamento.

Quem acompanhou “Confinada” pelas redes sociais teve a oportunidade ver reproduzida, no momento em que acontecia, toda a insanidade e crueldade da pandemia em nossos país, como a insensibilidade, alienação e o egoísmo das classes privilegiadas, a exploração da mão de obra, a estupidez do negacionismo, o racismo estrutural e tantas outras mazelas da sociedade brasileira. Ao reunir todas essas tiras em uma revista em quadrinhos, Leandro Assis e Triscila Oliveira entregam um retrato fiel do Brasil e que certamente será vista, no futuro, como uma das obras mais representativas de nosso tempo.

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