Medidas de polícia sanitária


Por Paulo Roberto de Gouvêa Medina, professor emérito da UFJF

10/11/2021 às 22h24

Duas medidas para enfrentamento da Covid-19 vêm suscitando discussão quanto à sua legitimidade: a obrigatoriedade da vacina e a exigência, para determinados fins, do chamado passaporte sanitário. Ambas decorrem do exercício, pela administração pública, do poder de polícia, que é a atividade por meio da qual, na área de sua competência, cada entidade federativa – União, Distrito Federal, estados e municípios – pode impor limites a direitos e liberdades, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado e a outros setores da vida social e econômica. Esse alcance do poder de polícia corresponde à definição que lhe dá o Código Tributário Nacional no art. 78, sendo aplicável a todas as hipóteses de sua atuação, inclusive a de que ora nos ocupamos. Em termos mais simples, pode-se dizer que o poder de polícia autoriza o Poder Público a adotar medidas de restrição aos direitos individuais para preservação dos interesses coletivos. É o que sucede quando se trata de proteger o cidadão em face de uma pandemia.

A vacinação é proporcionada às pessoas como forma de cada uma proteger-se contra a doença e, ao mesmo tempo, reduzir o risco da sua propagação, no convívio com as outras, ou seja, a fim de que o vacinado não se contamine facilmente nem se torne um potencial agente transmissor do vírus. O passaporte sanitário é um instrumento tendente a controlar, indiretamente, o cumprimento da obrigação de vacinar-se, mediante a exigência de sua apresentação para ingressar em outros países, frequentar determinados lugares ou utilizar certos meios de transporte. Visto sob outro ângulo, a adoção do passaporte sanitário é um meio de assegurar a obrigatoriedade da vacina, sem impor-lhe a aplicação de forma coativa.

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A história nos mostra que a vacinação obrigatória contra a epidemia de varíola, ocorrida em 1904, causou grande reação popular e despertou veementes protestos de figuras eminentes da República, chegando a provocar uma rebelião, no Rio de Janeiro, de que resultaram mortes, porque o sentido que se deu, então, à sua obrigatoriedade foi muito mais impositivo. A Lei nº 1.261, de 31 de outubro de 1904 que a instituiu, limitava-se a dizer, no art. 1º: a vacinação e a revacinação contra a varíola são obrigatórias em toda a República. O dispositivo seguinte autorizava o Governo a regulamentá-la. E a regulamentação de tal forma se fez que acabou gerando a revolta, muito mais dirigida, na verdade, contra os meios de que o Governo se valeu para aplicar a vacina do que, propriamente, à obrigatoriedade do seu uso. As pessoas não eram, à época, concitadas a procurar a vacina em postos de saúde; os vacinadores iam, de porta em porta, impondo-a aos moradores.

Acrescente-se a isso o fato de que a ciência não tinha, então, a credibilidade depois conquistada, e os meios de comunicação eram ainda precários, restritos aos jornais, cujas orientações, aliás, se dividiam a respeito. Houve, naquela quadra histórica, sem dúvida, politização do problema, acirrada pelos opositores do Governo Rodrigues Alves. Mas, não havia, então, o negacionismo obscurantista de hoje. Rui Barbosa, por exemplo, que, em determinado momento, criticou, no Senado, a forma como a vacina estava sendo imposta, fez questão de declarar que ele e sua família haviam se vacinado. E quando o Governo, em vista da rebelião, propôs o estado de sítio para debelá-la, Rui, a despeito de sua posição liberal, em princípio, contrária a medidas de exceção, deu-lhe voto favorável. O cenário atual é bem diverso, mas incompreensões e reações despropositadas, do mesmo modo, se manifestam, dificultando a superação da crise sanitária entre nós.

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