Com Parkinson precoce, homem luta por direitos junto ao INSS

Cozinheira de Juiz de Fora, que recebeu alta em perícia médica, mesmo com tendão do braço rompido, também sofre com falta de auxílio


Por Sandra Zanella

05/10/2021 às 07h00- Atualizada 05/10/2021 às 07h47

“Sou uma das pessoas mais jovens do Brasil com diagnóstico de Parkinson precoce. Estou há dois anos e seis meses sem receber do INSS, mesmo tendo ganhado um recurso administrativo por unanimidade. Estou sem condições de sobrevivência devido a este descaso com os meus direitos”, desabafa Rosalvo Arantes Júnior, de 33 anos, morador de Ubá. O mineiro é um dos milhares de brasileiros que precisam lutar para conseguir benefícios junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Na opinião de especialistas, a pandemia da Covid-19 agravou ainda mais a situação dos trabalhadores e pensionistas que dependem da autarquia, vinculada ao Ministério da Economia, para conseguirem, ao menos, comida na mesa e condições básicas para viver. Além do aumento da própria demanda, em decorrência de inúmeras mortes e adoecimentos, o órgão é visto como deficitário por uma série de motivos, que vai desde a falta de pessoal para análise dos pedidos, passa por longa demora nos resultados e chega a perícias mal realizadas, que podem resultar em injustiças.

Em Juiz de Fora, a cozinheira Marli Batista dos Reis Silva, 56, acabou de perder sua única fonte de renda, após ter sido considerada apta para o serviço, em uma perícia médica que ela considera completamente equivocada. “O último dia em que trabalhei foi 20 de julho de 2018, porque o tendão do meu braço direito rompeu. Fiquei encostada pelo INSS esse tempo todo. Mas na última perícia que fiz, dia 24 de julho deste ano, o médico me deu alta a partir de 11 de agosto. Só que minha cirurgia não saiu até hoje, e meu problema continua o mesmo. Como posso trabalhar? Se eu for fazer uma panela de arroz, ela vai cair no chão. O braço esquerdo também não está bom, está com inflamação no tendão. O médico falou que é muito esforço repetitivo. Eu ganhava R$ 1.100, mês passado só recebi R$ 300 e, neste, não vou ter qualquer rendimento. Tenho uma filha de 14 anos e estou com medo de não dar conta.”

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Dados divulgados pela assessoria de comunicação do INSS apontam que 101.691 pessoas conseguiram se aposentar em Minas Gerais de janeiro a agosto deste ano. Dessas, 16.963 precisaram parar de trabalhar por invalidez. Já em todo o ano passado, o número de novas aposentadorias no estado chegou a 165.186, incluindo 22.320 por incapacidade. Embora o INSS não tenha divulgado o número de mineiros que aguardam na fila para terem seus processos analisados, as estatísticas dão uma ideia da dimensão da procura.

Em 2020, mais de 4,6 milhões de solicitações de benefícios foram indeferidas no país, ou 47,8% dos 9,3 milhões de pedidos realizados, conforme informações do Boletim Estatístico da Previdência Social. Números do Sistema Único de Informações de Benefícios (Siube) indicaram, em meados deste ano, que mais de 470 mil pessoas aguardavam na fila da perícia. “É necessário destacar que a Lei 8.213/91, em seu artigo 1º, assinala que Previdência Social, mediante contribuição, tem que assegurar aos seus beneficiários os meios indispensáveis para sua manutenção, por motivo de incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de serviço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente. Ao INSS, por sua vez, cabe a responsabilidade de garantir e gerir a operação para que todos os direitos desses trabalhadores, assegurados pelo Regime Geral de Previdência Social (RGPS), sejam cumpridos”, destaca a advogada e professora especialista em Direito do Trabalho e Previdenciário, Direito Civil e Processo Civil, Marize Alvarez Saraiva.

Morosidade compromete sustento de famílias

“Descobri o Parkinson aos 30 anos. Comecei a sentir tremores e falta de coordenação motora, principalmente no lado direito do corpo, além de lentidão no movimento”, conta Rosalvo Júnior, que era frentista e professor de biologia do ensino fundamental. Divorciado e com duas filhas, de 9 e 14 anos, ele viu a doença surgir e logo desaparecer a renda mensal em torno de R$ 3 mil. “Entrei com pedido de aposentaria por invalidez e, em outubro de 2018, me concederam o auxílio doença até março de 2019. Entrei só como frentista, porque estava sem contrato de professor, e passei a receber R$ 1.524.”

Diagnósticado com Parkinson, Rosalvo Arantes Júnior está há dois anos e seis meses sem receber do INSS

O alívio, entretanto, durou pouco. “Precisei entrar com recurso administrativo, porque não consegui prorrogar o auxílio. Desde então não recebo, estou sobrevivendo de ajuda.” Em julho de 2020, Rosalvo ganhou a causa por unanimidade, para conseguir se aposentar por invalidez. “Mas a aposentadoria ainda não foi implementada. Na prática, não recebo nada”, lamenta. “Eu questionei, mas nem respondem. E na Ouvidoria dizem que só podem abrir reclamação uma vez. Disseram que eu tinha que esperar mesmo, que está na fila nacional para implantar o benefício, mas não deram estimativa, as informações são muito evasivas.”

Rosalvo acrescenta que sua doença é degenerativa e, para tentar frear os sintomas, ele deve fazer atividades físicas como parte do tratamento. A capoeira foi sua escolha. Para pagar as contas, inclusive de aluguel, e alimentar a família, Rosalvo costuma fazer até rifas. “Como cessaram meu benefício se a minha tendência é só piorar? Um amigo meu está ajudando no aluguel, e meu neurologista não está me cobrando, porque não tenho condições.” Ele descreve como “absurdo” o que está passando. “Quando temos que prestar alguma conta, não podemos atrasar nem um dia. Quando é a vez deles cumprirem a parte, fazem do jeito que querem. A lei só vale para a gente. Acho que precisa de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) sobre o INSS.”

‘Parecer divorciado da realidade médica’

No recurso de Rosalvo Júnior junto ao Ministério da Economia sobre o fim de seu auxílio-doença previdenciário em março de 2019, o recorrente alega a sua incapacidade laborativa total e permanente em virtude da doença que não prevê cura, mas deterioramento contínuo. Portanto, solicita a conversão do auxílio-doença em aposentadoria por invalidez.

Os autos foram enviados para Parecer Médico Federal, que se limitou a afirmar que o segurado deveria ser reavaliado quanto à manutenção da incapacidade para a função de frentista, enquanto estava completando curso superior em biologia. No julgamento, ocorrido no dia 30 de julho de 2020, mais de um ano depois, a relatora Ivana Maues Marques enfatiza: “Entendo que o parecer encontra-se divorciado da realidade médica do recorrente e de seu quadro clínico, bem como do relatório médico emitido por especialista, informando que a condição clínica torna o paciente incapaz para o trabalho. Insta destacar que a doença de Parkinson é uma enfermidade degenerativa que não tem cura, apesar do tratamento que ajuda o paciente a manter uma melhor qualidade de vida. Conforme a doença de Parkinson avança, ela se torna cada vez mais incapacitante, tornando difícil ou impossível a realização de atividades diárias simples. Destaca-se que a pessoa portadora do Parkinson mais jovem, que é o caso do recorrente, atualmente com 33 anos, terá uma progressão do transtorno mais rápida do que pessoas idosas. Assim, com base no documento médico apresentado, conforme já relatado, o benefício pleiteado deve ser convertido em aposentadoria por invalidez, uma vez constatada a doença incapacitante permanente do segurado.” O voto da relatora foi acompanhado de forma unânime pelos membros da 1ª Junta de Recursos.

Questionada sobre a situação de Rosalvo, a assessoria do INSS informou, em nota, que o fluxo de análise de recurso é diferente do processo de verificação do requerimento inicial. “Ao discordar da decisão do INSS, o segurado pode entrar com um recurso ordinário, que é fundamentado por uma equipe do INSS, que então encaminha todo o processo para ser analisado pela Junta de Recursos, órgão independente do instituto. Após a decisão da Junta, o processo retorna ao INSS, para a área de Benefícios, que faz nova análise, mantendo o que foi determinado pelo acórdão, ou recorrendo dessa decisão.”

Ainda conforme o INSS, o processo de Rosalvo encontra-se nessa fase de análise do acórdão. “Mantendo-se a decisão do acórdão, o processo é encaminhado a outra instância do INSS, para cumprimento, seguindo a ordem cronológica de entrada desses requerimentos, após a tramitação do fluxo administrativo normatizado de recurso.” A assessoria orientou o segurado a acompanhar o andamento do seu processo pelos canais remotos: Central 135 e MEU INSS (aplicativo de celular e portal na internet (gov.br/meuinss)

Cozinheira fica sem cirurgia e sem benefício

O caso da cozinheira Marli Silva também esbarra em burocracias e falta de assistência. Depois de ter seu auxílio-doença cancelado a partir de agosto, ela teve dificuldades para conseguir fazer o pedido de revisão do benefício pelo site, como havia sido orientada na agência. “Quando chega na parte final, sempre aparece que deu erro.” Após tentativas exaustivas durante três dias, ela finalmente conseguiu fazer o requerimento pela internet no dia 14 de setembro. Mas ao receber um e-mail solicitando diversas informações e documentos, precisou recorrer a uma advogada. Além disso, ela tenta se virar como pode nas tarefas do dia a dia, já que continua com o tendão do braço direito rompido desde julho de 2018.

Com tendão do braço rompido, e a espera de uma cirurgia, a cozinheira Marli Batista dos Reis Silva foi considerada apta para o serviço pela perícia do INSS

“Minha cirurgia não saiu até hoje. Corro atrás, vou ao posto de saúde do São Pedro, o papel fica uma semana lá, aí pedem para pegar de volta porque não estão marcando cirurgia eletiva de ortopedia.” Mesmo sem conseguir operar para tentar recuperar suas funções, Marli ficou sem benefício após receber alta da perícia médica. “Minha situação financeira está precária. Meu marido recebe só R$ 620, porque fez empréstimo, aí complicou. Minha filha de 14 anos vai voltar a estudar (presencialmente) e vai ficar mais difícil ainda, porque vamos ter mais gastos.”

Com relação ao caso de Marli, o INSS informou que há uma exigência aberta no processo dela. “A segurada precisa prestar maiores esclarecimentos quanto ao seu pedido de revisão administrativa, apresentando elementos que justifiquem a análise do caso. Para isso, ela deve acessar o Meu INSS e verificar o que está sendo solicitado.”

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Questionada sobre a demora para a realização da cirurgia de Marli via SUS, a Secretaria de Saúde da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) disse que a consulta dela estava parada no sistema devido à pandemia do coronavírus, mas foi retomada no último dia 30. Dessa forma, a cozinheira foi orientada pela pasta a procurar o posto de saúde.

A PJF acrescentou que, desde junho, vem trabalhando para a realização segura e gradual dos procedimentos cirúrgicos em caráter eletivo nas redes SUS e privada, levando em consideração a situação epidemiológica do município. “Com a liberação parcial das cirurgias eletivas pelo Governo do estado, Juiz de Fora está retomando progressivamente as cirurgias eletivas, monitorando as decisões sobre quais intervenções cirúrgicas serão realizadas, visto a situação dos equipamentos de saúde e considerando o número de internações e a atuação dos profissionais da saúde no enfrentamento à pandemia da Covid-19. Está sendo priorizado o agendamento de cirurgias cuja espera tenha impacto importante numa possível piora da doença do paciente e pelo novo agendamento de procedimentos cirúrgicos eletivos cancelados e adiados anteriormente.”

Pandemia ajuda a inchar sistema já deficiente

Para a advogada e professora Marize Alvarez Saraiva, os beneficiários sempre encontraram dificuldades na hora de obterem seus direitos junto ao INSS, mas a situação vem ficando cada vez mais crítica, sobretudo com a pandemia da Covid-19, que aumentou as buscas por auxílios-doença, aposentadorias e pensões por morte, já que muitos brasileiros adoeceram ou perderam entes queridos em decorrência do coronavírus. “Quanto mais as pessoas vão até o sistema, mais ele incha. Há muito tempo o INSS não faz concursos. Não tem pessoal capacitado, nem suficiente para atender os segurados.”

A especialista enfatiza que faltam condições logísticas. “Existe toda uma falência do próprio sistema em atender as pessoas, que vão até ele por necessidade, por motivo de doença ou porque acabaram de perder quem dava conta da manutenção da casa, no caso de pensão por morte. Elas não estão em condição de trabalho e precisam de uma resposta rápida, porque estão ali em busca de verba de natureza alimentar, para o próprio sustento e da família. Por isso é inadmissível não ter uma forma de correspondência rápida.”

A advogada cita que há menos de dois meses foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) da autarquia com o Ministério Público para estipular prazos para os processos extrajudiciais e judiciais junto ao INSS. “Atender em até 30, 45 dias, já está na lei. Mas costumam passar 90, 120, 180 dias e até muito mais do que isso sem uma resposta sequer ou, muitas vezes, negando o benefício pelos mais absurdos motivos”, diz ela, exemplificando com problemas cadastrais inexistentes. “Ou a perícia nega a segurados que às vezes não têm nem condições de sair da cama para trabalhar ou que possuem laudos que atestam a total incapacidade por doenças, como o próprio Parkinson ou um câncer avançado. Isso tudo vai empurrando as pessoas para o Judiciário.”

A burocracia também elevou na pandemia, devido aos atendimentos on-line. “Muitos documentos enviados não são analisados a contento. E o atendimento (presencial) está sobrecarregado, por mais boa vontade que os funcionários tenham.” Com o aumento da judicialização, a situação vai virando uma espécie de bola de neve, impactando vários setores. Marize ainda observa que tramita no Congresso uma matéria que joga para o contribuinte o pagamento de perícias judiciais. “Seria repassar para os segurados o ônus, os custos das perícias judicias. Atualmente, quem paga é a União federal, quando deferida assistência jurídica gratuita ao segurado. A ideia do projeto seria que ele passasse a custear”, aponta, como mais uma incoerência, já que a maioria, em tese, não teria como arcar com essas despesas.

A advogada e professora não vislumbra mudança positiva de cenário em curto prazo. “A não ser que a União federal se mexa para trazer melhor capacitação no uso da Previdência Social. É preciso colocar mais pessoas atendendo, não há outra saída. E os médicos peritos também devem olhar com mais humanidade para os segurados. Ninguém está pedindo benefício por brincadeira. Os pedidos de incapacidade precisam de maior celeridade de análise dos méritos, de resultados a curto prazo e justos, que levem em consideração inclusive a especialidade da doença. Acho absolutamente injusto que uma pessoa com doença de ordem psiquiátrica tenha laudo emitido por ortopedista, por exemplo. É absurdo o que o sistema brasileiro faz. Não pode simplesmente negar e deixar a pessoa jogada à própria sorte.”
Segundo Marize, mais de 90% dos segurados reclamam sobre como são mal atendidos, sobretudo nas perícias. “Têm que saber olhar a documentação, conversar com o paciente. O tratamento em muitos casos é desumano.” A especialista analisa que as críticas têm reverberado. “Um número incrível de pessoas precisou utilizar a Previdência Social. Não é só o trabalhador simples, mas quem tem mais poder de fala e verbaliza. E temos que nos manifestar, porque nossos direitos sociais estão cada vez mais achatados. Ninguém busca benefício à toa, se puder trabalhar com dignidade. É inadmissível que pessoas em situação de vulnerabilidade ainda passem por isso.”

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