O menino que roubava bicicletas

Por Luiz Carlos S. Faria Junior, Professor e pesquisador em Direito Internacional, Direito Constitucional e Direitos Humanos

23/06/2021 às 07h00 - Atualizada 23/06/2021 às 14h16

Nestes tempos sombrios que vivemos, com mais de 500 mil óbitos por Covid, escassez de vacinas, negacionismo e governo caquistocrático, me peguei pensando sobre um livro que marcou minha juventude. Escrito por Markus Zusak, “A Menina que Roubava Livros” conta a história de uma garota, seus encontros e desencontros com a morte, e seus livros roubados durante o período da segunda guerra mundial na Alemanha nazista.

À primeira vista, pode parecer que a narrativa literária e a realidade atual não se encontram, mas ambas se desenrolam em contextos de obscurantismo, de negação da ciência e da cultura e de encontros e desencontros com a morte. Assim como na Alemanha nazista, a produção da morte foi política de Estado, atualmente no Brasil a dinâmica de produção e reprodução social é necropolítica.

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Para além da utilização de conceitos crípticos para apresentar a crueza da vida que se desenrola e construir mensagens otimistas em relação ao futuro, é preciso analisar o avançar da história de maneira crítica e real: nós não estamos melhores como sociedade do que antes da pandemia! Nós não estamos melhores nem como indivíduos!

A pandemia não nos fez valorizar mais a vida, ou criar empatia pela dor dos outros, ou pensar coletivamente para superarmos o momento. A pandemia somente desnudou as engrenagens que produzem a sociedade na qual vivemos: profundamente racista, desigual e garantidora dos privilégios de poucos. Esse diagnóstico nos leva à analogia que dá título a essa coluna.

Há poucos dias atrás um jovem negro foi acusado de furtar uma bicicleta elétrica em um shopping no Leblon, zona sul do Rio de Janeiro, por um casal de pessoas brancas. Tal situação seria somente mais um caso de racismo cotidiano, discutido nas redes sociais, merecedor de breves notícias nos veículos de comunicação e fadado ao esquecimento se não fosse pela ação eficiente e impressionante da polícia, que identificou o real autor do furto – e pasmem, ele não é negro.

O acusado pelo furto da bicicleta da garota no Leblon é um ‘jovem’ branco, de 22 anos, morador de Botafogo, outro bairro da zona sul da Rio de Janeiro, com 28 passagens pela polícia.

Além da estereotipia do “Menino que Roubava Bicicletas” algumas coisas chamam a atenção nessa história e se relacionam com as perversas engrenagens que movimentam a sociedade na qual vivemos.

Primeiramente, é impressionante ver o empenho dos órgãos de segurança pública para restituir a propriedade privada da garota do Leblon. No bairro onde reside a “elite” carioca – e poderia ser a elite paulista, juiz-forana, gaúcha etc – o Estado, com seu braço policial, atua de maneira ‘eficiente’ na proteção dos indivíduos. Quando observamos a presença deste mesmo Estado em localidades periféricas e marginalizadas, sua ‘eficiência’ não é medida pelo número de bicicletas encontradas ou de ocorrências resolvidas, mas sim pelo número de corpos ou de sacos pretos enviados ao IML.

Outra questão que se destaca é o fato do “Menino que Roubava Bicicletas” ser retratado como um jovem e de encontrar-se livre após 28 passagens pela polícia. Não quero dizer com isso que o encarceramento é a solução, que se esse ‘jovem’ tivesse sido preso antes a bicicleta da garota do Leblon não teria sido roubada. Só gostaria de ressaltar que se este ‘jovem’ fosse negro, não mais seria chamado de jovem, mas sim de meliante/bandido/vagabundo, alcunhas qualificadoras para prisão, quando não execução.

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Enfim, a sociedade na qual vivemos, com ou sem pandemia, produz e protege historicamente “meninos que roubavam bicicletas”, desde que eles sejam meninos – cuja condição humana se verifica pela cor da sua pele, não atingido esse critério de brancura, desnatura-se para a categoria de bandido – odiada por esta mesma sociedade que historicamente os busca exterminar.

Fiel da Balança

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