O último dos andarilhos

Sebastián é “El Loco” porque o futebol não se explica pela lógica, tampouco pela frieza dos burocratas


Por Gabriel Ferreira Borges

15/06/2021 às 07h00- Atualizada 07/03/2023 às 10h33

Não há sequer uma linha sobre Washington Sebastián “El Loco” Abreu Gallo em “História da loucura”, de Michel Foucault. Mas é certo que, fosse “El Loco” mais velho ou Foucault mais jovem, o charrua ganharia ao menos uma nota de rodapé. Não há historiografia da loucura sem Abreu. A agonia é um boneco de ventríloquo sob os pés do uruguaio. Só não se sabe se por vaidade ou paixão. Certamente foi por paixão que, após cerca de 30 anos, retornou à terra natal, Minas, a pequena capital do Departamento de Lavalleja, para encerrar a carreira aos 44 anos. Ele bailou o último candombe na sexta-feira (11) pelo Sud América. Foi-se “El Loco”, mas também o desvario de uma geração inteira de uruguaios.

Seria um erro crasso mensurar “Loco” apenas por virtudes técnicas. É verdade que ser contemporâneo a jogadores como Diego Forlán, Edinson Cavani e Luisito Suárez depõe contra. Mas “El Loco” sabe que o futebol transcende um domínio milimetricamente plástico ou um arremate precisamente técnico. Poucos como ele entenderam que, em última instância, os jogadores respondem aos torcedores. Que o futebol se dá na identificação irracional entre os aficionados e os clubes. Por isso “El Loco” foi um artífice da insensatez por qualquer um dos 31 clubes por onde passou. Do Nacional ao Bangu, do River Plate ao Boston River. Sebastián é “El Loco” porque o futebol não se explica pela lógica, tampouco pela frieza dos burocratas.

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Entretanto, o futebol parece não ter retribuído à altura o que “El Loco” lhe deu. Não há como a melancolia da despedida passar despercebida. Não porque o Sud América fora goleado pelo Liverpool por 5 a 0. Mas, sim, porque ele, um andarilho nato, deixa os gramados quando não se pode mais perambular por aí. “El Loco” merecia um Centenário abarrotado para a sua despedida. Fosse o modesto Parque Angel Fossa, do Sud América, que seja. Pois os uruguaios compartilharam com “El Loco” a maior dentre todas as loucuras. O único toque de Abreu na bola durante todo o Mundial de 2010 devolveu os charrua a uma semifinal de Copa do Mundo após 40 anos. O arroubo de loucura fora até ensaiado por Luisito naquela noite em Joanesburgo, na África do Sul, em 2010. Só que a transgressão foi mesmo de “Loco” quando fiou o coração de milhões com uma cavadinha no penal derradeiro.

“Loco” não deixou os gramados para assumir o Ministério das Relações Exteriores de Luis Alberto Lacalle Pou. Poderia, aliás. Até segunda ordem, Abreu será técnico. Afinal de contas, seria pertinente se lançar a campo diante de uma iminente derrota mesmo aos 48 anos. O destino já era ensaiado há algum tempo, é verdade. “El Loco” acumulou a grande área e a casamata nos tempos de Boston River, por exemplo. O último dos andarilhos se vai. Não haverá sequer um estádio inédito ao Uruguai. Ao menos a trajetória de “Loco” denuncia que a inconsequência permanecerá inegociável.

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