Traço torto


Por Renan Ribeiro

02/04/2021 às 07h00

Foi no balcão do armarinho da rua de baixo que a paixão por artigos de papelaria começou. Na infância, todos os trocos que ganhava iam pra uma caixinha, até que o valor fosse suficiente para comprar um lápis novo, uma caneta nova. Quando houve a descoberta das lapiseiras, elas tomaram tudo. Os cadernos de desenho, na época, eram a distração favorita. Passava horas em cima deles. As folhas de papel ofício, comuns, eram separadas por folhas de papel de seda, quase transparentes. Eu adorava a disposição. Não usava as folhas finas, para mim, a função delas era simplesmente não deixar que os desenhos se misturassem e o atrito causasse alguma avaria. O desenho foi e, continua sendo, uma forma de deixar a cabeça livre.

A prática era alimentada de forma espontânea. Se havia tempo e inspiração, lá estava eu rabiscando alguma coisa. As margens e as últimas folhas dos cadernos escolares eram destinadas aos rabiscos. Até aí, era tudo na base do intuitivo, sem técnica, sem nada. Já adulto, senti que era a hora de voltar a desenhar. Só que, dessa vez, queria entender melhor como fazer. Fiz um esforço e incluí aulas de desenho no orçamento. Afinal, como diz minha mãe, trabalhamos para realizar os nossos sonhos.

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Com a pandemia, as lições passaram a ser dadas on-line. Um dos últimos exercícios passado pelo professor era uma imagem com poucos elementos. Pensei comigo: esse vai ser mais tranquilo. Ledo engano, claro. Fiz o exercício de acordo com os passos recomendados. Mantive a atenção em cada etapa. No meio do processo, cheguei a comentar em voz alta que não estava saindo como imaginava. Ao final, percebi que havia ali um erro bem evidente. A imagem era muito distante da referência. Não sabia dizer se era algo com a proporção, com a forma ou com a minha própria percepção.

Me afastei um pouco para tentar entender melhor o que aconteceu. Tive uma crise de riso, dessas que fazem a barriga doer. O traço torto me fez lembrar de uma obra de arte que foi restaurada, e o resultado ficou tão distorcido, que, ao cair na internet, viralizou e se tornou um meme.
Sempre levei tudo muito a sério na vida e a minha própria reação me espantou um pouco. Percebi que mudou a forma como lido com as coisas que quebram as minhas expectativas. Precisamos sim encarrar as nossas falhas e erros com seriedade. Mas há coisas que precisamos ver e sentir com menos peso. Há situações que podem ser corrigidas com uma borracha, ou em uma folha nova, sem estresse.

Naquele dia, e até agora, quando me lembro, me dá vontade de rir. Não quero contaminar o que me ajuda a deixar a mente leve, com a pressão e a obrigação por resultados e perfeição de outros campos da vida. Nessa altura do campeonato, esse tipo de cobrança não interessa mais. Claro que a intenção é sempre chegar no melhor possível. Mas é importante entender que o importante, nesse caso, é o processo. Aprender a lidar com os erros faz parte disso. O traço torto é o charme da coisa.

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