Às favas a imparcialidade! (Que país é esse?)

Por Thiago Almeida, advogado criminalista e professor de Direito Processual Penal

03/02/2021 às 07h00 - Atualizada 02/02/2021 às 22h15

Embora pontuada por contramarchas (às vezes bruscas), se supõe rumar o itinerário humano no sentido do aperfeiçoamento em suas variadas dimensões. Ainda que o horizonte turvo (como o atual) muitas vezes nos banhe de ceticismo, é preciso crer que estamos evoluindo.

No que diz respeito às formas de solução de conflitos, ao mirarmos o retrovisor da história fitaremos cenários ancestrais em que a primazia da força determinava a solução dos desacertos entre as pessoas. Na medida em que se evidencia a incipiência desse método, desenhamos novas possibilidades para a superação de enfrentamentos individuais e sociais, desde a acomodação de interesses por concessões entre os próprios envolvidos até a inserção de um terceiro sujeito que viesse a fixar, a partir de algum paradigma (religião, costumes, tradições, leis etc.), a decisão para o litígio.

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Caminha-se, então, para a figura do ‘processo’ como estrutura heterônoma de reparto, que amadurece na exata medida em que o próprio estado (com sua função jurisdicional) assume o papel que hoje exibe entre nós (Michel Foucault).

Mas o que se exige desse julgador, para que reconheçamos a validade desse processo e de sua decisão?
Tem lugar, aqui, a ‘imparcialidade’ como componente essencial da atividade jurisdicional. Trata-se de um padrão a ser observado, como conduta devida pelos juízes que “devem comportar-se na condução do processo como terceiros alheios aos interesses das partes” (André Machado Maya). Como tem insistido o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos nas últimas quatro décadas, a imparcialidade, que tem nos regimes democráticos seu ‘habitat natural’, consiste em ‘princípio supremo do processo’, operando como verdadeira condição de legitimidade para o exercício jurisdicional.

E o que contraria a imparcialidade?

O juiz comprometido com o êxito de uma das partes. No campo penal, o chamado ‘sistema inquisitório’ nos apresentou – e segue nos apresentando (conforme Tornaghi, “há formas inquisitórias vivendo de contrabando no processo penal”) – um julgador-acusador, ou mesmo um juiz conluiado com o acusador.
Acometido de um “quadro mental paranoico” (Franco Cordero), esse ‘estilo judicial inquisitório’ antecipa mentalmente a decisão condenatória e mergulha fundo na atividade probatória paragarantir o lastro da hipótese acusatória. Eis o ‘modus operandi’ típico dos processos inquisitórios/autoritários que florescem em ambientes democráticos tomados por permanências inquisitórias.
Pois bem.

Ainda que não tenham revelado novidades essenciais, diálogos mantidos entre Sérgio Moro e Deltan Dallagnol revelados nesta última semana aprofundam a demonstração de como se naturalizou, no âmbito da assim chamada ‘Operação Lava Jato’, o acintoso e obsceno conluio entre acusação e magistrado. É como se ecoasse dali a famosa exortação de 1968: às favas todos os escrúpulos de imparcialidade!

O que já não suscitava maior dúvida (ao menos aos mais atentos) agora se cristaliza: um juiz que tomou para si a direção de atividades a cargo da acusação, traçou cenários em conjunto com acusadores, sugeriu provas (quando não as ordenou de ofício), combinou decisões com Ministério Público, roteirizou o “melhor caminho” a seguir para que as decisões (subjetivamente já tomadas) pudessem soar convincentes, interferiu em cronograma de fases de operação policial, apontou fontes de prova e a necessidade de trazê-las ao processo, alertou procuradores sobre posturas mais eficazes a serem adotadas e tudo o mais que um clássico juiz-acusador-inquisidor deve fazer para garantir o êxito da punição.

Enquanto banalizarmos (ou, pior, festejamos!) o modelo de juiz que funciona como ponta de lança ou mola propulsora de uma atividade investigativa/probatória, deixando vaga a cadeira de um juiz imparcial, patinaremos num estado de letargia inquisitória que nos manterá acorrentados a uma cultura obscurantista.

A mesma consciência cívica que nos faz reconhecer a importância do combate à corrupção deve se engajar na preservação do nosso patrimônio jurídico. Não é preciso rasgar a lei para se avançar no terreno da moralidade.

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Seguimos, assim, na resignada espera de que, um dia, possamos romper com a profecia anunciada por Renato Russo: “Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação”.
Que país é esse?

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