Futebol na manhã


Por Wendell Guiducci

26/01/2021 às 07h00- Atualizada 26/01/2021 às 17h12

Era o primeiro domingo do ano, o sol brilhava e me pareceu boa ideia fazer uma longa caminhada com o cachorro. Botei-lhe a coleira e saímos andando aos arrancos pelas ruas molhadas da chuva de antes. Não há nada de suave ou relaxante em caminhar com o cachorro, pelo menos o meu cachorro. É mais uma batalha, feita de tropeços, puxões, pulos, lambidas e esfoladuras, uma escaramuça que pode durar entre 10 minutos e duas horas, a depender do percurso escolhido e da paciência disponível.
Subimos alamedas e descemos ladeiras, os cães atrás das grades dos portões latindo loucamente à nossa passagem, até que desaguamos em um campo de futebol onde, abstraído de onda vermelha e pandemia, um animado grupo de atletas de fim de semana pelejava. Sentei um pouco num tronco de árvore, na vã esperança de que o cachorro sossegasse. Pude apenas apreciar um ataque mal fadado pela ponta esquerda e um carrinho que levantou o lateral e cavucou metade do barranco.
À inquietude do cachorro, respondi me levantando e nos colocando novamente em marcha, circundando o campo de esquina. Não pude prestar atenção à peleja, apenas ouvir os gritos dos contendentes. Embora não saísse gol, o jogo parecia desigual, pois uma das equipes raramente conseguia deixar seu campo de defesa, acossada pelo adversário. “Passa, passa”, “tô livre, tô livre”, “dá nele, sô”, “pega aí, é seu, é seu” e expressões similares chegavam aos meus ouvidos. Uma delas saltou à audição: “Vou enrolar aqui, hein!”.
Pensei que fosse talvez algum corpo estirado no chão, avisando que faria cera para o tempo passar, talvez por seu time estar vencendo, e o jogo, perto do final. Mas o pau comia solto, canelas estalando, bola apanhando. Quem gritava, então? Aos solavancos impostos pelo cão andante, tentei identificar o camarada, quem sabe alguém no meio da torcida que bordejava o gramado. “Deixa passar não que eu tô apertando aqui!”, exclamou a voz, quando enfim pude identificar o emissor: o comprido goleiro de mãos descalças que guardava a cidadela tranquila, livre da ameaça do outro time que sofria nas imediações de sua própria área.
“Tô quase, tô quase”, bradava entre risos de contagiante felicidade, as luvas jogadas a seus pés, as mãos nuas ocupadas de cuidadoso trabalho que, à distância e aos puxões do cachorro, eu não podia identificar precisamente, mas não me custava imaginar. No meio de campo, o time do guarda-metas guerreava, agora já não sei se para vazar a defesa adversária ou única e exclusivamente para proteger o compridão que, sob as traves e o sol da manhã, laborava seu tesouro.
O restante da partida, o atento leitor me perdoe, não pude presenciar, dada a ânsia do cachorro de seguir em frente, sempre em frente, sempre aos repelões e cacetadas. Só registro que, ao virar a curva, pude ainda ouvir o grito vitorioso do nosso camisa 1, como fosse um gol em final de Copa:
“Agora a brasa!”

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