‘Não estou chegando sozinha’, anuncia Giane Elisa, nova diretora da Funalfa

Em entrevista exclusiva, diretora geral da Funalfa fala sobre planos para a instituição, propostas para classe artística, defende mesa de diálogo no patrimônio e se compromete com a revitalização do carnaval


Por Mauro Morais

10/01/2021 às 06h55- Atualizada 11/01/2021 às 15h55

Giane Elisa é servidora de carreira da Prefeitura, diretora e dramaturga do grupo de artes cênicas e políticas As Ruths, e agora diretora geral da Funalfa. (Foto: Fernando Priamo)

Seu Expedito entrou no Paço Municipal pela primeira vez aos 70, no último dia 2. A fachada do prédio era velha conhecida do metalúrgico aposentado, tanto por seu trânsito na cidade quanto pelas longas horas em que ele e a família passavam assistindo aos desfiles de carnaval na Avenida Rio Branco, bem diante da construção que serviu como sede da Prefeitura. Seu Expedito conheceu o Paço como convidado da posse da filha Giane Elisa Sales de Almeida para a direção da Funalfa, instituição que hoje ocupa o lugar. Estavam lá, ainda, um “irmão de coração” de Giane, uma prima e uma tia, também pela primeira vez no local. “Olha o lustre! O tamanho da mesa! Veja só o sofá!”, diziam, encantados.

“O Paço Municipal não foi, durante muito tempo, um lugar onde as pessoas achavam que pudessem entrar. Acontece também com outros espaços, com alguma loja da cidade. É só a gente pensar que Juiz de Fora é a cidade em que, até a década de 1970, no Calçadão as pessoas pretas não podiam circular livremente”, pontua Giane, resgatando a pesquisa que realizou no mestrado em educação na Universidade Federal Fluminense, quando retratou a trajetória de dez mulheres negras da cidade, jovens entre os anos 1950 e 1960.

PUBLICIDADE

Ver o encantamento do pai e da tia, conta a gestora, “me fortaleceu na missão que a (prefeita) Margarida traz para mim, do tudo para todos”. No sábado (2), quando deixou a cerimônia de posse e adentrou o gabinete, encontrou suas canetas e as imagens de Nossa Senhora Aparecida e de Xangô, transferidas da sala que ocupava nos últimos meses, respondendo por uma supervisão na Funalfa. Estava em casa. Agora, com as chaves nas mãos. “Existem muitos simbolismos nisso que está acontecendo agora. Não estou aqui só porque sou uma preta do PT, sei que tenho competência para estar aqui, mas não tem como esses simbolismos serem apartados da minha identidade”, diz.

“Quando chego aqui, um monte de gente chega comigo”, afirma, para em seguida louvar sua ancestralidade e a memória de sua mãe, Carminha, de Walter Coimbra, de Natanael do Amaral, de Cirene Candanga e de Gabriela Crochet, além do pai Expedito e do “pai de coração” Marcel Crochet. Os olhos ficam marejados. “São pessoas que me formaram para eu ser a mulher que sou”, explica ela, em seu terceiro dia de trabalho à frente da Funalfa, convidada pela mulher que, hoje prefeita, no passado foi sua professora no Colégio de Aplicação João XXIII.

Na entrevista exclusiva à Tribuna pela plataforma Zoom, a servidora de carreira, diretora e dramaturga do grupo de artes cênicas e políticas As Ruths, e agora diretora geral da Funalfa Giane Elisa traça suas visões sobre cultura, sociedade e política, anunciando um tempo de muitas vozes e presenças no Paço Municipal. “Não estou chegando sozinha”, reforça. “Outras tantas mulheres e homens pretos que foram silenciados na história dessa cidade chegam também, junto comigo.”

De dentro do prédio Giane avista o local onde a família assistia os desfiles de escolas de samba no carnaval da cidade: “Existem muitos simbolismos nisso que está acontecendo agora”. (Foto: Fernando Priamo)

Tribuna – Ano passado conversamos sobre sua dissertação de mestrado, que mostra como historicamente os negros foram invisibilizados e desprezados na narrativa oficial de Juiz de Fora. Dar visibilidade à vasta produção cultural negra é um compromisso seu?
Giane Elisa – O lema desse governo é “Tudo para todos”. A grande orientação da prefeita para a área de cultura é justamente essa, de a gente ter a possibilidade e o compromisso de reforçar a democratização do acesso e da fruição aos bens culturais. E que a gente possa fazer isso da periferia para o Centro. Não é criar, porque as coisas já existem, nem dar voz, porque as pessoas já têm voz, mas que a gente vitalize o que acontece nas franjas da cidade. No pós-vacina, vamos fazer uma movimentação grande no que existe nos bairros e nas comunidades. Quando falamos desses espaços, obviamente falamos da população negra, que é a maioria nesses locais, está invisibilizada e não se reconhece como produtora de cultura e como artista.

“Não é criar, porque as coisas já existem, nem dar voz, porque as pessoas já têm voz, mas que a gente vitalize o que acontece nas franjas da cidade”

O movimento deve ser de fazer o Centro chegar à periferia ou da periferia chegar ao Centro?
É um caminho de duas vias: a Funalfa estar nesses lugares e esses lugares estarem na Funalfa. Queremos que o Teatro Paschoal Carlos Magno seja socializado, para que o menino que estuda lá no Santa Cruz tenha a possibilidade de se ver produtor cultural e de se ver público. Queremos fazer uma grande interseção de ações, uma grande comunicação de ações culturais e artísticas na cidade inteira. Que as pessoas possam circular pela cidade fruindo dos bens culturais que ela tem.

Na pele, liberdade. Nos projetos, liberdade. Para Giane Elisa, é importante que as populações periféricas, em sua maioria negras, se entendam como produtoras de arte e cultura. (Foto: Fernando Priamo)

Como está sendo formada a equipe? Qual a previsão para a nomeação?
De maneira geral, não tem ninguém do segundo escalão nomeado. Acredito que já na primeira quinzena tenhamos as equipes compostas, embora já tenhamos muita gente trabalhando, fazendo suas pesquisas, buscando modos de contribuir.

Há menos de dois anos, a Funalfa passou por uma reestruturação interna. O formato se manterá agora?
Temos muitos ganhos de gestões passadas. Temos a proposta de manter algumas questões e dinamizar outras. Podemos trocar funções de um lugar para o outro, mas a estrutura não será alterada. Queremos estender os olhares para pensar a produção cultural por outros vieses que ainda não tivemos a oportunidade de pensar.

“Queremos estender os olhares para pensar a produção cultural por outros vieses que ainda não tivemos a oportunidade de pensar”

Giane espera anunciar sua equipe na primeira quinzena de janeiro. (Foto: Fernando Priamo)

Hoje, a Funalfa tem a Praça CEU da Zona Norte e o programa Gente em Primeiro Lugar geridos por uma organização social. Já o Paschoal Carlos Magno, o CCBM e outros equipamentos são gerenciados de forma direta. Como ficará a gestão dos espaços de cultura da Prefeitura?
Em relação aos espaços, estou tomando pé essa semana de maneira mais íntima do modo como são administrados e quais as filosofias que estão nesses lugares. Não queremos desprezar a cultura que já foi construída nos territórios porque estamos chegando agora. É importante ouvir. Em relação ao Gente e à Praça CEU, a intenção, inclusive, é que tenhamos outras praças. Antes de ser a diretora, eu era a supervisora responsável pelos contratos e já vinha acompanhando a situação e, por orientação anterior, conduzia alguns ajustes pedagógicos que precisavam ser feitos. Pretendemos permanecer assim. A gente vai assumir essas ações, que devem ser, genuinamente, geridas pela Funalfa. Temos a organização parceira, mas a gestão política, filosófica e pedagógica é a da fundação. E uma grande orientação da prefeita é que deixe de ser um modelo de árvore para ser integrada, com departamentos e secretarias integradas.

Haverá diálogo entre as pastas?
Já começamos a nos organizar de maneira muito próxima com a Secretaria de Esporte e Lazer, com a Secretaria de Turismo, com a Secretaria de Desenvolvimento Econômico, num modelo de interação circular. Queremos fazer uma gestão colegiada, exatamente para ampliar o olhar, para que outras pessoas possam compor essa gestão de “tudo para todos”.

“Queremos fazer uma gestão colegiada, exatamente para ampliar o olhar, para que outras pessoas possam compor essa gestão de ‘tudo para todos'”

Este momento é muito grave para a classe artística, que em março completa um ano com as atividades paralisadas. O que já foi pensado para auxiliar a classe e como está sendo pensada a futura retomada?
No sentido de reabertura, esperamos o plano que a Secretaria de Saúde, em conjunto com a prefeita, vem organizando. Não podemos dizer que vamos abrir em julho, porque temos que ver o andar do primeiro momento de vacinação. Em relação ao incentivo à classe, temos, hoje, na Prefeitura, a Secretaria de Planejamento Territorial e Participação Popular, que é uma das responsáveis por fazer a ação dos territórios, articulando e mobilizando, o que inclui a cidade inteira. Ela é uma parceira fundamental nessa escuta. Nesse período pré-vacina, o que nos parece interessante é o fortalecimento dos canais de comunicação com a classe, para ouvir com metodologia e participação e, assim, nos instrumentalizarmos. Na dinamização do organograma da Funalfa, teremos espaços para os artistas se reconhecerem aqui dentro e poderem trazer projetos e questões.

O conteúdo continua após o anúncio
Giane pretende dinamizar a Funalfa, inclusive seu curto orçamento, garantindo ações democráticas e capilares. (Foto: Fernando Priamo)

O que é possível fazer com o orçamento da Funalfa hoje?
É um orçamento pequeno. Na dinamização da estrutura da fundação, pensamos num ente de captação de recursos. Junto com o Turismo e o Desenvolvimento Econômico, pensamos na captação de recursos como sendo muito importante. Queremos fortalecê-la, com momentos de formação para os fazedores de cultura, para que eles também possam captar recursos e não fiquem dependendo o pouco que existe aqui. Nesse momento histórico que o Brasil vive, nem Ministério da Cultura temos mais, a classe artística ficou à deriva e a Lei Aldir Blanc representa essa grande mobilização do setor, o que é muito importante. As mobilizações populares são fundamentais para essa gestão, para instruir e fomentar a ação da Funalfa.

“As mobilizações populares são fundamentais para essa gestão, para instruir e fomentar a ação da Funalfa”

Um apoio financeiro da Prefeitura à classe artística é possível hoje?
Hoje não existe nada criado, mas a possibilidade existe. Temos uma lei orçamentária feita pela gestão passada, vamos ter que nos adequar, mas uma coisa importante que a atual administração começa fazendo em relação às diversas reivindicações que surgem na cidade é a Mesa de Diálogo, juntando diversos entes. Também podemos pensar isso para a cultura.

A Mesa de Diálogo também pode ser pensada para o patrimônio, que é uma questão tão sensível na Funalfa e envolve diferentes interesses?
Tenho uma relação afetiva grande com a questão do patrimônio material, mas meu envolvimento histórico, de militância e de formação política é muito relacionado ao patrimônio imaterial. A equipe que existe na fundação é altamente qualificada, o que me deixa bastante tranquila. De fato, é uma área que precisa também ser vista com olhares ampliados, também, para que tenhamos a possibilidade de conversar com as pessoas envolvidas e para que pensemos na cidade como um direito de todos. É uma área que tem muita demanda, e não abrimos mão de compreender o patrimônio como um artefato importantíssimo da cultura.

“É uma área que tem muita demanda, e não abrimos mão de compreender o patrimônio como um artefato importantíssimo da cultura”

Giane defende a escuta como procedimento principal de sua gestão e cogita utilizar a Mesa de Diálogo e Mediação de Conflitos também para questões da fundação. (Foto: Fernando Priamo)

Em seu programa de governo, a então candidata Margarida Salomão se comprometeu a regulamentar a lei do potencial construtivo, tão aguardada pelo setor. Isso já foi conversado depois que ela se tornou prefeita?
Ainda não. Chegamos no meio de chuvas torrenciais e de uma pandemia. A prefeita tem se dedicado muito a isso. Ela mesma disse que, no momento, ainda estamos na reação ao que está acontecendo para, em breve, começar na ação. Acredito que essa lei virá nessa etapa de ação, mas ela é interesse da equipe do patrimônio e do Governo.

O carnaval de Juiz de Fora também se enquadra nesse pensamento da ação, já que não passa mais por uma negociação pontual entre a Funalfa e as escolas e blocos ano após ano, mas exige uma reestruturação muito profunda, das quadras e das comunidades. Qual é a sua relação com o carnaval e quais são suas diretrizes para o setor?
Quando o carnaval era na Avenida Rio Branco, tinha um primo que vinha para a frente do Paço Municipal às 14h para guardar lugar para nós. Ele trazia um banco, passava o dia, e de noite chegava o resto da família com o lanche para assistir aos desfiles. Minha família toda torcia pelo Unidos dos Passos. Tenho uma relação extremamente amorosa com o carnaval e com a instituição escola de samba. Nosso desejo é que em 2022 possamos, de maneira consciente, adequada, pensada e amplamente discutida, retornar com os desfiles de escolas de samba. Talvez seja um tema para ir para a Mesa de Diálogo. Para retomar, este ano iremos pensar em formas de captação de recursos. Não podemos ter escolas que só dependam do dinheiro da Prefeitura. Em lugar nenhum onde existem grandes carnavais é assim. As escolas precisam ter uma vida além e devemos construir junto com esses agentes culturais a consciência de que eles são artistas e o carnaval é um patrimônio importantíssimo para o Brasil e pode levantar a moral desse país, que está lá embaixo. Obviamente não faremos em 2022 o que existia na década de 1970, mas que consigamos ir retomando, inclusive a autoestima. Como gestora e como cidadã, como mulher negra oriunda do movimento negro, me comprometo com o carnaval, que é onde as pessoas se encontram, se realizam e se fazem. Carnaval gera renda e emprego e deve ser um vetor da economia criativa. E o carnaval de rua também deve ser valorizado. Como estão os blocos nos bairros? Aos poucos eles foram sumindo.

“Como gestora e como cidadã, como mulher negra oriunda do movimento negro, me comprometo com o carnaval, que é onde as pessoas se encontram, se realizam e se fazem”, diz Giane Elisa. (Foto: Fernando Priamo)

 

Os comentários nas postagens e os conteúdos dos colunistas não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é exclusiva dos autores das mensagens. A Tribuna reserva-se o direito de excluir comentários que contenham insultos e ameaças a seus jornalistas, bem como xingamentos, injúrias e agressões a terceiros. Mensagens de conteúdo homofóbico, racista, xenofóbico e que propaguem discursos de ódio e/ou informações falsas também não serão toleradas. A infração reiterada da política de comunicação da Tribuna levará à exclusão permanente do responsável pelos comentários.