Tiozão


Por Júlia Pessôa

27/12/2020 às 07h00- Atualizada 28/12/2020 às 09h46

Do alto dos seus 73 anos, Humberto havia conservado a curiosidade genuína, que carregava desde menino, sobre as coisas – sobretudo num mundo que viu mudar tantas vezes. Era uma bênção e uma maldição.

Por um lado, tinha a mente aberta e nunca se acanhava em perguntar o que de fato não sabia. Além disso, jamais era teimoso, intransigente ou preconceituoso. Gostava de aprender, apreço inalcançável aos teimosos ou presunçosos – duas das coisas de que jamais se poderia dizer sobre ele. “Aaaaahh, entendi. Pabllo Vittar está na verdade questionando isso de ‘coisa de homem’, ‘coisa de mulher’, essas coisas, né?”. “Hummm, entendi. Se eu salvar na nuvem é mais seguro, certo?”. E assim ia aumentando seu repertório de conhecimento e mantendo-se não apenas atualizado, mas revigorado, jovem, chegando a surpreender quem tirava suas dúvidas: “Tá, mas se a gente fizer tudo assim usando coisas do Google, se um dia ele sair do ar, dá zebra, não?”.

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Por outro lado, sentia que às vezes importunava com a sua perguntação, ora com  pleníssima razão de quem interpelava, ora por mera impaciência. “Humberto, eu não vou ficar te dizendo se é racismo ou não é, você tem que pesquisar.” “Não, pai, a Tia Dorinha está doida! Não tem nada de mutação com a vacina, não dá corda não!”. “Sim, Tio Beto! Tenho certeza que vai estar lá se você salvar na nuvem, sim.”

Além da curiosidade, outro traço de Humberto é que ele sempre foi a alma da festa – e amava o posto. O queridão da enorme família, o tio preferido, o pai que dava orgulho de apresentar, irmão divertido. Um cara gente boa. Talvez por isso, neste 2020 em que teve tantas perguntas, muitas sem respostas, tinha sido tão dolorido passar o Natal longe do “furdunço” familiar habitual. Mas foi o mais sensato a se fazer. Ele – obviamente – havia perguntado a um amigo infectologista com antecedência. “É, Betão, esse ano, o mais seguro é cada um no seu canto.” E assim foi.

Na videochamada natalina com a família, cada um em sua casa, foi fazer a infame e esperada piada, já debochando com o título merecido de tiozão, enquanto sua irmã mostrava a sobremesa que sempre prepara – não quis furar a tradição. Assim que fez a pergunta, uma das poucas para a qual não queria resposta, teve a réplica mesmo assim, mirando o doce de pixels. Em 2020, na ceia entre telas, infelizmente era só “pavê”.

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