Hereditariedade


Por Júlia Pessôa

20/12/2020 às 07h00- Atualizada 03/02/2021 às 16h59

Venho de uma longa linhagem de vascaínos por parte de pai. Tenho fotos ainda bebezinha no colo do meu pai, com a primogênita de meses de vida ostentando uma pequeníssima Cruz de Malta e o “cinto de segurança” característico do time. Nunca dei muita trela pra futebol, mas confesso que fui bem feliz com o Cruz-Maltino quando criança, com uns bons títulos nos 1990. Depois fui perdendo o interesse, o Vasco foi parando de ganhar, meu pai e meu avô moravam em outra cidade, qualquer (pouco) esforço de torcida futebolística de minha parte ficou restrito às copas do mundo – quando muito, ateia esportiva que sou.

Já há alguns anos meu avô e meu tio torcem numa divisão superior, longe do plano material, onde espero que o Vasco não tenha a pecha de vice, coitados! (Afinal, não dizem que se parte desta para uma melhor?) Mas a vida toda, antes de ir alegrar o andar de cima, meu vô era clinicamente proibido de assistir ou ouvir os jogos do Bacalhau ao vivo. Fazia a pressão ir às cucuias, um risco para sua desde sempre frágil saúde.

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O mal parecia ser hereditário. Também me lembro do meu irmão bem menino, ardendo em febre, totalmente de fundo emocional, quando o time de seu pequeno coração tomava alguma rasteira – se fosse do Flamengo, era sempre pior. E aí também sempre me vem a recordação da minha mãe medindo a temperatura e consolando o vascaininho: “Ô filho, não precisa ficar assim, o Vasco nem sabe que você existe!”. Às vezes funcionava, e algum tempo depois o menino já estava de pé. Em outras, ele retrucava, ainda um pouco choroso: “Mas eu sei que o Vasco existe, mãe!”, dizia, num pequeno drama infantil – não que isso mudasse o quanto ele ficava verdadeiramente inconsolável.

É exatamente assim que venho me sentindo em relação ao país: “Não vejo o melhor sinal de melhora em nada no Brasil”, como disse Maria Bethânia outros dias atrás, e eu assino embaixo. Nos lapsos de esperança, escuto a voz da minha mãe, como se falasse de um time do coração que só me dá desgosto: “Não precisa ficar assim, filha, o Brasil nem sabe que você existe”. E aí me encanto com uma coisinha aqui e acolá: um filme, uma música, um carinho, uma cambalhota que a gata deu no sofá, “Fulano saiu do CTI”, “Fulano já está em casa”… Dá para encontrar beleza, sim, nas pequenas alegrias, e só nelas. Porque se penso demais, percebo sem demora que pouco importa minha insignificância para o país. Mentalmente, respondo, exausta, desiludida e frustrada, como todo mundo com um mínimo de juízo.

“Eu sei que o Brasil existe, mãe!”

 

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