A indicação de Kássio Nunes para ministro do STF


Por Daniel Giotti de Paula, procurador da Fazenda Nacional, professor e doutor em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ

05/11/2020 às 06h58

O Senado Federal aprovou Kássio Nunes, desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal na vaga do decano Celso de Mello, contra todas as apostas nonsense, apocalípticas e fantasiosas possíveis por Bolsonaro, que rondavam as mentes e os corações de todos os brasileiros.

Na imensa lista de apostas para a vaga, havia algumas beirando o folclore, como a de indicar a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, cuja trajetória jurídica, com todo respeito a ela, não está à altura do cargo, uma caricatura que poderia equiparar o presidente a Floriano Peixoto, o qual, em 1892, tentou fazer do médico Barata Ribeiro um membro da Corte Constitucional.

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Causou temor entre aqueles que valorizam o caráter laico um medo quase apocalíptico de Bolsonaro escolher “uma pessoa terrivelmente evangélica”, pois isso seria um indicativo de interpretações constitucionais em bases religiosas. Houve ainda aqueles que apostavam no juiz Marcelo Bretas, que, a julgar por como se expõe em suas redes sociais, poderia trazer para o STF alguém sem papas na língua e com uma exposição fora do figurino padrão da Corte.

Mas a escolha foi por um magistrado de “carreira”, porque o presidente foi more presidential, seguindo os requisitos constitucionais para sua indicação. Além da idade mínima de 35 anos, Kássio possui notável saber jurídico e caráter ilibado pelo próprio cargo que já ostenta. As aspas, porque, em verdade, é desembargador escolhido pelo chamado “quinto constitucional”, não tendo prestado concurso para juiz federal.
Legitima-se, assim, um processo que envolve a OAB indiretamente, pois Kássio foi um dia advogado, escolhido por seus pares, para contemplar lista a ser submetida ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região e, posteriormente, para o presidente da República da época. A OAB não parece mais tão má, como o candidato Bolsonaro dizia…

As escolhas para ministros do STF desafiam o senso comum, que acredita poder o presidente tudo. O presidente no Brasil não tem os poderes imperiais e magistrais atribuídos ao presidente dos Estados Unidos da América, comparação aliás que sequer se prestaria neste caso, porque uma das coisas que um presidente não pode nos States é ser inconsequente nas indicações para os justices, os ministros da Suprema Corte.

A sabatina do Senado é levada tão a sério lá que, ainda que o presidente tenha maioria parlamentar, se o candidato tiver deslizes morais em sua vida pregressa, tiver feito um lobby intolerável, queimado uma bandeira do país, sucumbe, e, quando sucumbe, parte do poder magistral do presidente dos EUA e se vai. Os freios e contrapesos nos Estados Unidos da América possuem uma dimensão institucional invisível para a estrutura jurídica, que é curiosamente o combustível para a força normativa da Constituição e da democracia norte-americanas.

Voltando ao Brasil, como o presidente Bolsonaro cada vez mais se revela um insider na política, deixando as bravatas para alimentar uma parcela do eleitorado que lhe dá câmaras de eco, mas não base política real, fez a opção tradicional por alguém que, sob o crivo do Senado, não foi visto como sem os predicados constitucionais.

Como disse recentemente o presidente Fernando Henrique Cardoso, em entrevista no Roda Viva, em um órgão colegiado com 11 pessoas, o natural é que os magistrados se acomodem à tradição jurisdicional e julguem com base na Constituição e não imponham sua vontade. Escutam a sociedade, é claro, mas possuem convicções jurídicas.

A atual indicação do presidente sinaliza para essa continuidade institucional e mostra que as escolhas menos óbvias são as mais racionais.

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