Reclamão


Por Renan Ribeiro

30/10/2020 às 07h00

Foram as derrotas diárias as responsáveis por me tornar um reclamão durante a quarentena . Percebi há muito pouco tempo. Começou com as ligações dos robôs oferecendo vantagens ditas irrecusáveis, mas são as mesmas de sempre, na verdade. O telefone berrando e os números de estados em que nunca estive, como Ceará e Mato Grosso brilhando na tela. No gesto automático de levar o telefone às orelhas, a raiva vai se aproximando ligeira. Desligo antes de a gravação encerrar a primeira frase, ouvida algumas dezenas de vezes. O número de reclamações é proporcional.

O barulho do bairro tem se tornado um incômodo constante e, por isso, também, motivo de queixas. Dia desses, gravando o Direto da Redação, passou moto, passou caminhão, enquanto eu esperava a minha vez. Quando percebi que havia algum silêncio, posicionei a câmera, comecei a gravação e, nos segundos finais, quando eu me despedia, um motoqueiro acelerou o veículo por uns 10 segundos e estragou o vídeo todo. Reclamei novamente.

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Por falta de tempo e, ultimamente, de paciência, tenho visto poucos programas na televisão. No fim de semana, menos ainda. Mas liguei o aparelho dia desses e logo desisti. Zapeei por alguns minutos,porém nada atraiu muito a minha atenção. Comentei com meus pais sobre como a programação estava fraca para mim.

Também passei por momentos em que o contato com algumas fontes foi difícil. Não conseguia falar com quem precisava, não encontrava as informações que precisava, nada estava fluindo como deveria. Mesmo sem verbalizar, a reclamação estava ali. No meu semblante preocupado, na minha irritação com as coisas que não estavam dando muito certo.

Já me queixei sobre as queimadas, sobre o tempo quente demais, a respeito do cansaço de esperar a superação dessa pandemia e também sobre uma série de faltas e saudades que tenho sentido. Tanto que cheguei a ter dó de quem convive comigo.

Eu precisei levar um choque para sair desse estado e começar a ver que não adianta ficar só na reclamação. Por um acaso, assisti a uma entrevista sobre uma pessoa que tinha enfrentado um problema de saúde terrível. Uma situação que ia se tornando cada vez mais difícil, cada vez com menos possibilidades de saída. Contava com todos os elementos para dar muito errado e uma pequena porcentagem de chance de uma resposta positiva. Mas havia naquela pessoa uma postura muito ativa, de responder ao que era possível. Sem investir tempo no que não estava nas mãos dela.

Meses depois, a pessoa estava bem. Teve a melhor resposta que poderia acontecer, algo bem semelhante a um milagre, além de ter nas mãos uma história riquíssima para compartilhar. Transformou o problema que tinha em uma maneira de ajudar, oferecendo dados e o caminho das pedras a quem está passando por algo semelhante.

Entendi que o que gerava os meus resmungos eram coisas muito pequenas, muito insignificantes. Minha irritação era desproporcional. Entendo agora que em uma situação totalmente atípica, como a que vivemos, isso faz parte do processo. No entanto, as coisas não precisam ser daquela forma. Ainda não me sinto preparado para fazer o jogo do contente, como fazia Pollyanna.

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O paralelo pode parecer esquisito, mas a fala daquele entrevistado me fez ver as situações cotidianas de estresse sem a lente de aumento que eu estava usando, mesmo sem me dar conta. As coisas ainda me afetam, mas ao invés de reclamar, eu tento entender o que está acontecendo para eu me sentir daquela forma e sigo em diante.

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