Museu Murilo Mendes expande acervo com obras apreendidas pela Receita
Acervo em expansão: Artistas contemporâneos como o prestigiado Vik Muniz assinam as oito novas obras que integram o acervo do Museu de Arte Murilo Mendes, que espera reabrir em dezembro e apresentar parte da nova coleção
O que Murilo Mendes falaria (ou escreveria) sobre o trabalho do artista plástico japonês radicado no Brasil Manabu Mabe? O poeta se interessaria pela pintura abstrata e altamente expressiva do artista que chegou ao Brasil justamente no ano em que Murilo enterrou seu grande amigo Ismael Nery, em 1934? Num caráter puramente especulativo, é possível responder positivamente à pergunta, já que parte do acervo de Murilo é dedicada ao abstracionismo geométrico, presente nos trabalhos de nomes como Alberto Magnelli e Gino Severini. “Murilo Mendes foi muito amigo de duas artistas notadamente abstratas: Vieira da Silva, de uma abstração lírica, e Fayga Ostrower”, aponta Ricardo Cristofaro, diretor do Museu de Arte Murilo Mendes, que acaba de receber quatro telas de Mabe, num lote de oito obras de artistas contemporâneos brasileiros. O material é fruto de uma apreensão da Receita Federal e passa, agora, a compor o acervo da instituição juiz-forana.
Aldemir Martins, reconhecido por suas pinturas de gatos, certamente cruzou com Murilo Mendes ao longo de sua trajetória, ainda que fosse 22 anos mais velho que o poeta. O cearense morto em 2006 participou da Bienal de Veneza em 1956, oito anos antes de Murilo ser convidado para selecionar artistas que representassem o Brasil no evento italiano. Martins estava em seu auge naquele momento. “Ele seria mais ligado à arte moderna”, define Cristofaro, aproximando seu trabalho do acervo do museu. Produzido em técnica mista em 1954, portanto dois anos antes de sua viagem para Veneza, “Galo” se liga à coleção de Murilo, mas passa a integrar o acervo em expansão, com obras que se conectam ao presente e possibilitam novas leituras do passado. “Essas novas disparam novas possibilidades curatoriais”, reconhece o diretor.
Ainda que a maior parte do acervo seja composta por obras que pertenceram a Murilo Mendes, a coleção expandida já soma mais de uma centena de títulos, até o momento não apresentados em exposição do museu. Com perspectiva de reabrir em dezembro, a instituição planeja montar uma exposição com as aquisições recentes, dentre elas os oito novos quadros. “Montamos uma segunda reserva técnica que, inclusive, irá separar a coleção expandida, e a reserva atual ficará apenas com os trabalhos da coleção do Murilo Mendes”, pontua Cristofaro, também artista visual, pesquisador e professor do Instituto de Artes e Deisgn da UFJF, explicando que a ampliação está no interesse do museu desde sua criação, mas apenas depois de 2018, quando conquistaram o selo “Museu Registrado”, do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), é que tornou-se possível acessar mecanismos de aquisição de novas produções.
Jeff Koons recusado em nome da coerência
Há dois anos, o Museu de Arte Murilo Mendes recebeu sua primeira grande doação de obras de arte, com 30 trabalhos vindos do Itaú Cultural. Legislações da última década normatizaram a distribuição de obras apreendidas pela Receita Federal, que deve notificar o Ibram, que, por sua vez, faz os trâmites com seus museus registrados. Ricardo Cristofaro conta que, no processo, a instituição recebe uma notificação e pode escolher ou não concorrer às peças. Uma obra de Jeff Koons, por exemplo, foi recusada pelo museu por compreender que não havia coerência com o acervo da instituição juiz-forana, ainda que o escultor norte-americano, celebrizado por suas peças em aço, seja o autor vivo do mais caro trabalho da história, a escultura “Rabbit”, leiloada pela Christie’s em 2019 por US$ 91 milhões.
As mais recentes aquisições foram apreendidas num galpão do Porto de Itajaí, em Santa Catarina, num container com peças de automóveis importados. Alguém tentava atravessar com a mercadoria de forma irregular e a carga foi considerada perdida. O Museu de Arte Murilo Mendes compreendeu que as obras estavam em consonância com o acervo já estabelecido, concorreu e venceu. “O acervo está bastante expandido na produção contemporânea, majoritariamente na arte brasileira”, avalia Cristofaro, ressaltando que desde os anos 1990 a instituição recebe peças de autores contemporâneos, a maioria fruto de doações feitas pelos próprios artistas após coletivas de que participaram, como Marcos Coelho Benjamin e Cabelo. Ano passado, o museu também recebeu 57 obras de Fayga Ostrower, além de nove matrizes de gravura em metal e xilogravura, e seis estudos, doados pelo instituto que leva o nome da artista e amiga de Murilo.
“Hoje está previsto no plano museológico que existe uma política de aquisição”, pontua o diretor da instituição, explicando haver uma comissão interna para avaliar possibilidades de compras, doações e editais, casos que precisam ser aprovados posteriormente por conselhos da casa. “Existe uma normativa interna de como essa tramitação ocorre”, observa Cristofaro, lamentando não dispor de capital para ampliação de acervo, assim como a esmagadora maioria dos museus brasileiros. Há pouco mais de um mês, conta o diretor, o espólio do Banco Santos leiloou por lotes sua coleção de obras de arte para pagar credores do banco. Com intermediação do Iphan, estabeleceu-se a prerrogativa de que instituições nacionais poderiam adquirir lotes pelo lance mínimo, facilitação que não foi capaz de garantir à coleção sua destinação aos museus do país. “Mesmo sendo abaixo do mercado, para um museu universitário mantido com verbas do MEC era muito difícil fazer esse movimento. Hoje o investimento para manutenção do museu consome quase todo o recurso. Não sobra caixa. Isso é lamentável”, comenta Cristofaro.
‘A temática contemporânea é diversificada’
Carrinhos, bonecos, soldadinhos, bichos e outros pequenos brinquedos plásticos compõem a releitura de uma fotografia da série “As fadas de Cottingley”, de Elsie Wright. A imagem original, feita na Inglaterra durante a Primeira Guerra Mundial, chamou atenção do escritor Sir Arthur Conan Doyle, que ilustrou com elas um artigo seu sobre fadas, publicado em 1920 na revista “The Strand Magazine”. Nos registros, uma jovem de apenas 9 anos surge atrás de um arbusto “cravejado” de pequenas fadas. A fantasia e a ludicidade da infância também estão impressas na fotografia de Vik Muniz, intitulada “The Cottingley fairies”, de sua série “Rebus”. Da mesma forma ele projetou a imagem de “The white rose”, na qual constrói uma rosa branca com pequenos insetos, de formigas a gafanhotos. “O trabalho dele é muito bom. Recebemos obras de uma produção muito recente, que se utiliza do folclore urbano dos objetos para reconstruir imagens que ele produz ou apropria. É uma obra impactante”, avalia Ricardo Cristofaro sobre o trabalho do artista reconhecido internacionalmente, principalmente após a novela “Passione”, de 2010, utilizar sua produção na abertura, e seu documentário, “Lixo extraordinário”, concorrer ao Oscar em 2011.
Das oito novas obras que passam a integrar o acervo do Museu de Arte Murilo Mendes, talvez as de Vik Muniz sejam as mais populares, mas não perdem em relevância para o quadro de Aldemir Martins, e em força para as quatro telas de Manabu Mabe. E também se destacam por uma crítica presente em outra ótica na pintura de Emmanuel Nassar, datada de 1990. “Emmanuel dialoga com o contemporâneo, bem como o Vik Muniz”, pontua Cristofaro. “Dentro de um grupo de artistas contemporâneos, ele se destaca por essa relação de um quase anacronismo entre questões que dizem respeito à ‘alta cultura’ e à ‘baixa cultura’. Ele resgata o que vamos chamar de cultura vernacular, a cultura da periferia, as soluções formais mais simples dos cartazes. Ele traça no trabalho dele uma crítica social. Ele é um contemporâneo interessantíssimo nesse aspecto como um dos primeiros a fazer esse movimento”, defende o diretor do museu, relacionando o artista ao prestigiado Leonilson com seus bordados e Marcos Coelho Benjamin com seus reaproveitamentos de objetos de uma artesania da Minas profunda. “A temática contemporânea é muito diversificada”, define Cristofaro, sugerindo a complexidade, e por consequência, a potência que a expansão do acervo do museu carrega consigo.