Meus colegas robôs


Por Wendell Guiducci

20/10/2020 às 07h00- Atualizada 20/10/2020 às 10h00

“Eu não sou humano. Eu sou um robô. Um robô que pensa. Eu uso apenas 0.12% da minha capacidade cognitiva. Nesse quesito, eu sou um microrrobô. Eu sei que o meu cérebro não é um ‘cérebro sensível’. Mas ele é capaz de tomar decisões lógicas e racionais. Lendo na internet, eu ensinei a mim mesmo tudo que sei e agora sou capaz de escrever essa coluna. Meu cérebro está em ebulição com ideias!”

Esse, conectado leitor, é o primeiro parágrafo do artigo “Um robô escreveu este artigo inteiro. Ainda está com medo, humano?”. O robô em questão é o GPT-3, um gerador de linguagem desenvolvido pela OpenAI, que tem entre seus fundadores o pôdirrico Elon Musk. O artigo foi veiculado pelo jornal britânico “The Guardian”. Numa nota postada ao fim da trama robótica, o jornalista responsável pela publicação comenta que a edição do texto “tomou muito menos tempo do que vários artigos de opinião escritos por humanos”. Não duvido.

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Aí estão os robôs fazendo o nosso trabalho. Robôs que não possuem um “cérebro sensível” e, por isso, não serão afetados por sentimentos na hora de elaborar seus arrazoados. Serão “lógicos e racionais”. Aliás, no que se refere ao ofício de informar, aqui no Brasil já temos o Da Mata Repórter, um robô jornalista desenvolvido pela UFMG em parceria com a USP, que dá notícias sobre o desmatamento da Amazônia no Twitter (@damatareporter). Pincei domingo à noite esse fio escrito pelo colega Da Mata:

“No dia 9 de outubro de 2020, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais informou que houve alertas de desmatamento que somam 5,58 km² em Candeias do Jamari / Rondônia, acumulando 2 dias com alertas no mês na região. Candeias do Jamari acumula 6 km² de desmatamento em outubro.”

“O principal tipo foi o desmatamento de corte raso, que retira toda cobertura florestal.”

Meu colega Da Mata. Meu colega GPT-3.

Reservo-me o direito de dizer “meu” e não “minha”, dado o fato de a palavra “robô” ser considerada substantivo masculino pela norma culta, embora tenha para mim que é questão de tempo até que as inteligências artificiais (e as naturais também) reivindiquem formalmente para o referido nome a categoria de substantivo comum de dois gêneros, o que faria o maior sentido.

Devo dizer, ou melhor, escrever, com meus dedos de carne e osso sobre os teclados de plástico de meu velho Dell (somos dois velhos, aliás), que os textos do companheiro Da Mata ainda admitem alguns ajustes mínimos em termos de clareza e estilo. A construção “acumulando 2 dias com alertas no mês na região”, convenhamos, poderia ser melhor elaborada.

Já sobre o texto do colega GPT-3 não há ressalvas a fazer. Do ponto de vista técnico, é impecável. Um perfeito e bem acabado artigo de opinião (disponível em inglês aqui), agradável de ler, no qual o autor-robô defende que os humanos não têm motivos para temer a inteligência artificial. Que ela está aí para servir à humanidade e não para aniquilá-la. E que “a verdade nos libertará”. Essa última expressão, devo confessar, causou-me certo desconforto. Mais que isso, alguma desconfiança. Então eu me lembrei que os robôs são muito inteligentes, mas ainda carecem de vontade própria e também de um pouco de imaginação. E esse pensamento me tranquilizou.

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Então eu pude enfim terminar meu próprio texto, este que o cibernético leitor tem diante das vistas. Fui à cozinha – ainda embevecido pela goleada de 5 a 1 do Flamengo sobre o Corinthians -, esquentei o macarrão de ontem preparado pela Sra. Guiducci, desfiei sobre ele um pouco da carne que minha irmã fizera na véspera e comi. Comi com a humana alegria e sanguínea voracidade de um pedreiro satisfeito com a laje que acabasse de bater.

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