Como ficam os artistas sem o calor e participação da plateia?

Representantes da música e das artes cênicas comentam a importância da presença física do público após isolamento


Por Júlio Black

18/10/2020 às 07h00

José Luiz Ribeiro tem feito lives para conversar sobre o teatro, mas não faz apresentações (Foto: Marcelo Ribeiro/Arquivo TM)

Pouco mais de sete meses depois da confirmação do primeiro caso de Covid-19 em Juiz de Fora, seguimos a viver tempos estranhos, absurdos, trágicos, inconsequentes… Não faltam adjetivos para definir o que tem sido 2020. No caso da arte e da cultura, podemos afirmar que vivemos, ainda, tempos de distanciamento entre artistas e público, afinal são mais de 200 dias de teatros, cinemas, galerias, museus, casas noturnas e espaços culturais em geral fechados.

Na última quinta-feira (15), o Conselho Municipal de Enfrentamento e Prevenção à Covid-19 definiu o avanço do município para a onda verde do programa Minas Consciente, que permite o funcionamento de cinemas e libera atividades de recreação e lazer e eventos, entre outros, mas a certeza quanto à reabertura deve vir apenas com o decreto municipal previsto para a próxima quarta-feira (21). Até lá, pelo menos, artistas e público seguirão distantes fisicamente, próximos apenas quando realizados eventos virtuais, como as lives.

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‘Não sei se as pessoas vão redescobrir o teatro’

Com quase 60 anos dedicados ao teatro, o ator, diretor e dramaturgo José Luiz Ribeiro, do Grupo Divulgação, conta que ia ao Forum da Cultura (local onde encenou praticamente todas as suas peças em quase cinco décadas) “todos os dias” desde 1972, mas que desde março foi ao espaço cultural apenas duas vezes, para acompanhar uma dedetização e pegar documentos.

Para ele, o 2020 sem apresentações e distante do público tem sido “horroroso”. “Eu tive plateia minha vida inteira, seja como professor, ator, diretor, e agora não temos isso. No máximo, é um coração na live, uma pessoa dando ‘oi’; com isso, a alma desaparece, perdemos esse contato, não tem jeito”, lamenta. “Machuca muito não ter resposta, pois passei a vida inteira dialogando com o público.”

Ribeiro é parte da turma que considera a presença física do público fundamental para o teatro. “A nossa comunicação é direta, bilateral e recíproca, e quando você entra com a mediação (de um meio de comunicação) passa a não ter essa resposta. Entre assistir a uma peça mal estruturada na casa de um ator e a um filme, você prefere um filme, ainda mais com a quantidade enorme de opções no serviço de streaming”, argumenta o diretor, que decidiu não encenar peças, monólogos ou cenas curtas pela internet, o que não quer dizer que não faça lives. Já foram mais de 80 em seu perfil no Instagram (@joseluizribeiror). Atualmente, faz nada menos que três por semana.

 

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“O Gustavo Burla (diretor) até falou comigo de fazer uma leitura, mas achei que não atingiríamos a alma das pessoas com isso. Fiz uma coisa mais ligada ao lado de professor e pessoa de comunicação no início, com aulas de teatro, falando sobre grandes nomes, gêneros teatrais, memória do Grupo Divulgação. São apenas 30 minutos em cada live, mas dá muito trabalho. Contando a pesquisa e outros preparativos, gasto 12 horas em cada uma. Acredito que até 2025, quando isso tudo acabar, teremos feito um bom trabalho (risos).” Apesar do bom humor, José Luiz Ribeiro demonstra preocupação quanto à capacidade da arte de sobreviver em nova configuração, como teatros com capacidade de público reduzida. “A cadeia de energia vai ser quebrada, pois serão lugares separados. Não teremos o público junto, o que ajudaria a esquentar o espetáculo. Não sei se as pessoas vão redescobrir o teatro depois disso tudo”, diz, temeroso, porém com motivos para ainda buscar o otimismo. “Mas espero que o mundo fique melhor. Tenho uma neta com oito meses, preciso que ela encontre um mundo melhor.”

‘Não é teatro’

Gueminho Bernardes tem mais de 40 anos de carreira, e para ele o momento atual apenas acentuou uma situação preocupante que acredita se desenrolar há tempos: a perda de espaço das artes cênicas. “O teatro, em particular, já vinha sofrendo há tempos uma espécie de isolamento. Vivemos hoje uma revolução nos atos de consumo que disputam tempo de tela. A gente não está perdendo público para a pandemia, e sim para os games, a Netflix, WhatsApp, TikTok. É o que tem afetado de fato a produção cultural de forma muito profunda e que não vai passar com a vacina. Pode ser irreversível para a forma como as pessoas consomem produtos culturais, e em especial o teatro, que existe somente com a presença de público”, analisa.

Gueminho tem se desdobrado para produzir textos para internet (Foto: Vanessa D’Aguiar)

Gueminho tem uma opinião fortemente formada a respeito das tentativas de apresentações pela internet. “Não é teatro. Não é porque tem ator representando que se chama teatro. O que é essencial ao teatro é a relação viva e ao vivo com a plateia. É uma relação direta, que não pode ser intermediada por uma tela. Isso pode ser cinema, ‘meeting’, dê nome que quiser, mas teatro tem que ter a plateia, o público sentir o seu perdigoto (risos), que o ator leve o público para o palco, sente no colo dele. Peço perdão a quem divergir, mas pra mim não é teatro”, pontua.

Gueminho e seu grupo, o TQ (Teatro de Quintal), preferiram realizar lives em seu canal no YouTube com entrevistas com outros artistas. Eles também têm produzido o que chamam de “meeting theatre”, em que gravam pequenas esquetes por meio de plataformas de reunião virtual, posteriormente editadas. “É muito triste ficar isolado, parado, e resolvemos brincar um pouco com isso. Mas o que estamos fazendo é vídeo, não é teatro. O teatro talvez seja o único gênero que não existe sem a presença de público. Pode existir teatro sem ator, sem luz, sem cenário, mas sem público não existe. É a interatividade com a plateia que faz a grandeza do teatro”, afirma.

Além da discussão sobre a importância da presença do público, Gueminho Bernardes ainda ressalta a forma como as plataformas digitais exigem uma produção massacrante por parte dos artistas. “Temos tentado colocar dois vídeos por semana no canal do TQ no YouTube, e além disso trabalho com o Gustavo Mendes, que está com uma demanda de colocar quatro vídeos por semana em seu canal. Você é obrigado a manter uma audiência, uma intensidade, e tenho que escrever textos originais, engraçados, provocativos, quatro vezes por semana, é muito difícil. Você cria uma cumplicidade com essas plataformas e redes, pois elas te dão e te cobram; é preciso ter produção, retorno, monetização, visualizações, likes”, critica, lembrando que ainda está escrevendo um livro sobre a trajetória do Teatro de Quintal, que será publicado com o apoio da Lei Murilo Mendes.

Não poder ter o contato e resposta diretos do público desanimaram Deborah Lisboa a realizar lives (Foto: Mariana Moraes/Divulgação)

Necessidade do ‘olho no olho’

Perder o contato físico com o público afeta os artistas de formas diversas. No caso de Deborah Lisboa, esse período tem tocado fundo. “Fiquei meio ‘deprê’, porque o circo tem um diálogo muito forte com o público, de olhar no olho, e dependemos muito dessa troca. Eu, como palhaça, preciso disso o tempo todo, até para a improvisação”, diz. Ela e outros artistas tentaram manter no perfil do Espaço Amplitud no Instagram (@espacoamplitud) uma versão reduzida do projeto “Cabaré pocket”, em que criavam números durante as aulas virtuais, inclusive convidando artistas de outras localidades para participar. Deborah destaca a importância das lives para incentivar os alunos a criarem, mas depois de algumas apresentações perceberam que seria inviável.

“Na primeira vez fiquei muito deprimida (risos). Fizemos por pouco tempo e desanimamos. No caso do circo, precisamos saber se está esquentando o público ou não, se estão rindo, aplaudindo. Ter essa resposta é importante, terminar o espetáculo e conversar com as pessoas, saber se ficaram emocionadas. Algumas pessoas conseguem se reinventar, mas, no nosso caso, fazer isso por vídeo é mais uma exibição por exibição, sendo que já estamos bombardeados por informação.”

Deborah diz esperar ansiosamente o dia em que tudo possa voltar a algum tipo de normalidade, pois esse tempo sem atividades presenciais, apenas virtuais, ajudou a reforçar a importância da presença do público, independentemente do local. “Não sei como seria minha vida se isso (espetáculos com público) não voltasse em algum momento. A arte do circo em si é uma arte popular, quer chegar em todo mundo, independente se a pessoa pode pagar ou não, e fazer apenas pelo Instagram não nos deixa chegar a todos. Ficávamos apenas com os alunos, as pessoas que nos seguem, não conseguimos alcançar a pessoa que passa quando fazemos os espetáculos de rua. Como podemos chegar nesse público que não tem condições de acesso à internet? É muito frustrante.”

 

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Essa foi a proposta do convite para criação de cena da @saladegiz nesse momento de grande dificuldade para nós artistas, é de fundamental importância o apoio e a possibilidade de continuar criando. . “A partir daí nasceu em mim a pergunta que tipo de cura eu me produzi? Antes de qualquer coisa entender que para produzir cura para o outro é necessário se curar. Quando penso no meu papel de professora artista, artivista, mãe, cidadã, é inevitável compartilhar minhas questões, minhas dúvidas, minhas vitórias e minhas dores. A partir daí percebo que promovo um caminho de cura muito mais pela exposição dos meus processos do que por teoria. O feminismo veio como descoberta ao mesmo tempo que é colo e é sacode. Uma coisa eu aprendi: o processo é longo e doído mas nada é mais Libertador! Liberte a sua dor! Livre-se do que não presta, do que não respeita, do que não engrandece a sua criança interior!” Artista: @deborahmagrela @espacoamplitud Imagem:@annaflora_coimbra Edição: @drewpersi #apoieoartista #circojf #espacoamplitud #saladegiz #cura #ficaemcasa #circoamplitud

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Adaptado às lives

Um dos mais conhecidos e respeitados músicos locais, Dudu Lima sente falta do contato com o público e a interação e resposta que existem nas apresentações ao vivo, porém ressalta que foi necessário adaptar-se. Por isso, diz que apostou nas lives que realiza sozinho em seu perfil no Instagram (@dudulimabass) e com o Dudu Lima Trio no canal do grupo no YouTube. “No terceiro dia de isolamento em casa resolvi fazer lives diárias, e foram 45 dias direto com repertório diferente, com públicos diferentes, então acho que ali foi uma imersão quase inconsciente nesse mundo, pois nunca tinha feito lives de qualquer espécie. Percebi que precisaria entrar nesse universo, pois gosto muito de tocar para as pessoas, fazer show, e esse foi um meio de suprir essa necessidade de estar em contato com o público.”

Dudu Lima tem feito seguidas lives em casa (Foto: Olavo Prazeres/Arquivo TM)

Chegou um momento que Dudu estava tão adaptado que a preparação para a live parecia dia de show: passava o som, preparava repertório… “E é ao vivo, tem que ser tudo perfeito, são questões e desafios muito próprios dos shows, e essas coisas começaram a me atrair. Quando vi, estava adaptado e gostando daquilo, sinto como se estivesse na frente das pessoas. Foi muito interessante desenvolver esse feeling.”

Além da adaptação, Dudu Lima observa que um vídeo na internet tem um campo de ação maior que o de um show presencial, por poder atingir uma audiência maior e por tempo indeterminado, mas nem por isso desmerece a força da apresentação ao vivo. “Uma apresentação em teatro reúne 300 a 400 pessoas, e numa live você expande isso a números impensáveis, pois não importa onde a pessoa está, ela poderá assistir. Esse aspecto é muito interessante. Por outro lado, somos criaturas extremamente sociáveis. A nossa cultura é do contato, e a força da música ao vivo vem muito da emoção do momento, você está vendo a transformação da arte em realidade. Isso tem uma força que é insuperável do ponto de vista emocional, espiritual.”

Além das lives, o Dudu Lima Trio tem realizado apresentações em festivais que têm acontecido de forma virtual, uma realidade que o músico acredita que vá perdurar por um tempo razoável. “O pessoal que organiza os grandes festivais dos quais participamos estão planejando voltar apenas em 2022, por isso deixo uma mensagem de força aos nossos colegas, ainda mais porque muitos não se encaixam nesse contexto virtual. Eu consegui me adaptar bem às lives, sinto como se tivesse muita gente me assistindo; consegui sentir aquela energia do palco. A saída é tentar ‘ser você’ ao vivo o máximo possível dentro do mundo virtual. É o que vai nos restar por um bom tempo, e que a arte possa sobreviver a esse desafio. Afinal, os momentos que a arte proporciona são oásis de felicidade.”

Sem lives, apenas gravando

Integrante da Alles Club e Basement Tracks, Ruan Lustosa preferiu ficar de fora das lives (Foto: Natália Elmôr/Divulgação)

Outro músico, Ruan Lustosa, faz parte de duas bandas conhecidas em Juiz de Fora, a Basement Tracks e a Alles Club, mas nenhum dos dois projetos realizou lives _ e se depender de Ruan, vai continuar assim. “Não funcionaria para mim (não ter público). Não faço questão de fazer uma live, o que vale para mim é a presença no show. Uma das coisas que me movem é fazer música com o público, ter aquele calor. Com a live parece que você volta mil passos, fica uma coisa fria.” Ruan, todavia, prefere não criticar quem optou pelas apresentações virtuais. “Falo que é ruim, mas é o que podemos no momento de isolamento. Tem gente que tem necessidade maior de ter contato com o público, no meu caso prefiro ficar gravando. Sinto saudade das apresentações, porque o show é a parte de todo um processo de estar numa banda. Você faz a produção do disco, grava e depois quer divulgar, e a melhor forma é o show, onde tem público, que é o determinante para uma banda.”

“No início da pandemia até assisti a uma ou outra live, era uma coisa em que a galera embarcou e todo mundo fazia, mas acho que, dependendo do artista, é por amor mesmo ou para ter companhia”, especula. “Alguns faziam até todos os dias pra preencher uma solidão, não era nem uma coisa de ter uma live superespecial.” Sem palco para tocar, Ruan tem encarado a pouca atividade de suas bandas. No caso da Basement Tracks, o grupo “está 100% parado”, segundo ele, incluindo o processo de pré-produção do novo álbum. Quanto à Alles Club, parte da banda está na Europa, então eles têm aproveitado o tempo para gravar alguma coisa do projeto de covers que devem lançar entre o final do ano e o início de 2021.

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